segunda-feira, 18 de junho de 2012

Se eu fosse um militante marxista heterodoxo, o que eu diria da heterodoxia acadêmica.

           É comum na academia, marxistas ou simpatizantes do marxismo argumentarem, quando fazemos qualquer crítica às teses centrais do marxismo ortodoxo (etapismo, economicismo, obrerismo, etc), que esse dogmatismo já foi há muito superado no marxismo, e que, durante o século XX, revisões profundas foram realizadas por pensadores das mais diversas nacionalidades.

Não há dúvida que na academia muitos dos dogmas do marxismo ortodoxo sofreram críticas sistemáticas, e, em muitos casos, se não foram abandonados por completo, passaram por profundas revisões. Mas entre revisões realizadas no âmbito da academia e a sua concretização em teorias e práticas abraçadas por sindicatos, partidos e movimentos sociais, existe uma distância considerável. A crítica à ortodoxia marxista, ortodoxia cuja expressão hegemônica ainda é o bolchevismo, permanece ainda atualíssima quando é feita a partir da perspectiva militante, e não nos departamentos de filosofia, sociologia, economia, ciência política, história, etc.  Em grande parte dos movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos combativos, a maioria das teses e metodologias que fundamentaram e fundamentam as interpretações da realidade e as práticas da militância ainda são teses e metodologias características da ortodoxia marxista.
Quanto ao modelo de organização, as organizações apresentam, na sua maioria, estruturas internas rigidamente verticalizadas, com centralização das decisões em uma pequena elite dirigente (centralismo democrático). Quanto às suas teses, ainda vigoram as concepções da precedência do econômico sobre o político e cultural (sendo os dois últimos supervenientes do primeiro), a centralidade do operário industrial como o sujeito revolucionário e projeções teleológicas de que a cada crise do capitalismo o seu fim se configura no horizonte, etc. Tais proposições são ainda marteladas em cursos de formação para a militância, e orientam os rumos das organizações e as práticas de muitos dos seus militantes, e, em especial, dos seus dirigentes.
Claro que nem todas as teses são defendidas em todas as organizações, mas, de modo geral, sempre há um conjunto delas hegemonizadas nos movimentos e partidos. Afora as teses, ainda o mais danoso às organizações é, de longe, o modelo organizacional que ainda vigora em quase todas elas, salvo poucas exceções. As estruturas verticalizadas têm sido, recorrentemente, as principais causas internas de burocratização dos movimentos, imprimindo, em parte, nas organizações sociais e políticas um descolamento entre base e direção que só contribui para a desmobilização e a inviabilização estrutural do protagonismo dos militantes da base, tão essencial para que as organizações não percam sua combatividade, força e perspectiva revolucionária.
Entretanto, apesar do modelo bolchevique de organização ser muito mais danoso às organizações de esquerda do que teses como as da centralidade do operariado industrial e de que, necessariamente, o capitalismo nos conduzirá, em virtude das suas contradições internas, a um modo de produção superior, ou seja, o socialismo, não se pode negligenciar a copresença recorrente nas organizações - ainda que não necessária - do modelo de organização verticalizada, das teses da vanguarda revolucionária (aquela que introduz de fora a consciência revolucionária na classe) e da centralidade do operariado industrial.
Um exemplo recente de uma disposição caricata dessa relação ocorreu no ato, chamado pelo PSTU, em solidariedade a Pinheirinho. O ato que saiu do centro da cidade de São José dos Campos e terminou na prefeitura, estava disposto da seguinte maneira: na frente, iam os dirigentes do partido (vanguarda iluminada); logo atrás, os militantes do partido (órgão que unifica a classe e a guia rumo à revolução). Em um terceiro plano, encontravam-se os militantes da central sindical do partido, a Conlutas, (organização dos trabalhadores submetida ao partido); depois os estudantes (dentre eles os futuros dirigentes em potencial). E, por fim, o resto dos movimentos sociais e independentes (massa amorfa que segue cegamente seus dirigentes e partido revolucionário, mera correia de transmissão do partido).  Entre cada setor compartimentado da “cosmovisão” bolchevique do PSTU, havia uma faixa impedindo o desarranjo da disposição que é dada, a priori, pela “teoria revolucionária” a cada setor.da classe A cada um a sua posição engessada previamente “na marcha histórica rumo ao socialismo”.
A imensa variedade de marxismos que a academia tem produzido nada ou quase nada influenciou, ate agora, as organizações sociais e políticas da esquerda marxista combativa. E se isso se deve em muito à própria estrutura das grandes instituições universitárias no capitalismo, orientadas principalmente para formar os filhos das classes dirigentes, uma parte importante da “culpa” reside no fato de que os intelectuais marxistas que reviram os dogmas da ortodoxia, em especial do bolchevismo, não eram e não são “intelectuais orgânicos”, ou seja, que dedicaram e dedicam o seu trabalho intelectual em auxiliar a classe trabalhadora organizada na sua luta contra o capital.
O bolchevismo, nas suas diversas expressões (leninismo, trotskismo, stalinismo, maoismo), ainda é a ideologia predominante nas organizações de esquerda tanto combativas quanto adeptas do jogo institucional burguês.  Com isso não quero dizer que não houve fora da academia, e sistematizadas teórica e praticamente no calor das lutas, perspectivas marxistas heterodoxas, que questionaram os postulados e métodos bolcheviques. Rosa Luxemburgo e os conselhistas são exemplos de alternativa ao bolchevismo. Tais correntes do marxismo, no entanto, nunca cresceram ao ponto de pôr em risco a hegemonia bolchevique na esquerda marxista durante todo o século XX até agora.
A força que o bolchevismo adquiriu internacionalmente a partir da derrota da revolução russo, tomada do poder pelos bolcheviques, aniquilação de qualquer oposição de esquerda, desmantelamento dos sovietes livres e conselhos de fábrica, resultando na consolidação do Estado soviético autoritário e imperialista que durou quase oito décadas, foi um dos fatores essenciais para o fracasso do marxismo “heterodoxo” presente nas lutas de massa.  Mas mesmo após duas décadas do fim do “socialismo real” e do controle dos partidos comunidas pelo Partido Comunista Russo, ainda assim o bolchevismo continua a ser a ideologia dominante nos setores organizados da classe trabalhadora. E esse quadro geral de dogmatismo teórico e prático na esquerda marxista não alterará nada se novas propostas e recuperação de antigas não sairem de dentro das organizações sociais e políticas, alimentando-se de práticas novas e antiautoritárias da própria classe, e engendrando metodologias de prática e análise capazes de se apresentarem como alternativas ao bolchevismo.
           Caso contrário, as teses e práticas bolcheviques continuarão a confeccionar o mais do mesmo, e a heterodoxia do marxismo permanecerá sendo gestada de intelectuais para intelectuais, sem que, em função do seu distanciamento do “mundo da vida”, faça o menor sentido como ferramenta que auxilie a classe trabalhadora na luta contra o Estado e o capital.     

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Argentina como exemplo para a periferia da União Européia.


       A reestatização do petróleo e gás argentinos, com ampla aprovação popular pelo governo de Cristina Kirchner, assim como no caso da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia em 2006, provocou na mídia oligárquica, como esperado, uma chuva de ameaças e “supostas previsões” dos danos que isso pode causar à economia do país. Isso para não mencionar os argumentos recorrentes de que a reestatização violaria contratos “legalmente” efetivados entre o governo e o setor privado. Mas esses argumentos se revelam falácias neoliberais assim que nos detemos aos fatos.

      A onda neoliberal de privatizações, que ocorreu em especial na década de 90 do século passado, conduziu os países latinoamericanos a uma dependência ainda maior do capital internacional, passando para capitais privados setores estratégicos da economia, que sempre são fontes de receita importantíssimas para o Estado. As privatizações na América Latina foram conduzidas à revelia de sua população, engordaram os cofres de multinacionais que, a preços de banana, adquiriram o direito de explorar nosso petróleo, gás, minérios, etc., e enviar os lucros para seus países de origem. O caso boliviano é emblemático no tocante à renacionalização de um setor estratégico que viabilizou uma fonte de divisa – antes toda enviada para o exterior – que retorna em investimentos em políticas de saúde, educação, moradia, etc., nunca anteriormente implementadas no país, que até então era o mais pobre da América do Sul.

     A Argentina é, sem dúvida, um dos países que mais sofreu os efeitos da política imperialista de privatizações, por ter seguido à risca os imperativos do consenso de Washington. As políticas econômicas neoliberais levaram o país a sua pior recessão entre 1998 e 2002. Mas ele vem demonstrando o conteúdo ideológico – desde que declarou moratória da sua dívida externa – do discurso fomentado por Washington, FMI e OMC, de que não manter “os compromissos” com as instituições financeiras internacionais conduz, necessariamente, à inflação galopante, escassez de divisas, e que, somado ao fechamento do crédito internacional, provoca a falência do país.

    Nos últimos 10 anos, o PIB argentino cresceu 90% e os investimentos sociais praticamente triplicaram. A renacionalização do petróleo e gás parece, com isso, ser mais um passo de Buenos Aires para reverter parte dos danos causados por mais de uma década dogmatismo neoliberal. 57% da companhia de petróleo argentina, a YPF, estava em mãos da Repsol, empresa espanhola, e já há 7 anos que a extração de petróleo do país baixou quase 20%. Dado o fato de o país, como salientou Mark Weisbrot no artigo replicado no Outras Palavras, ter dificuldade com empréstimo no mercado financeiro, a nacionalização do petróleo e gás será determinante para a Argentina “acumular um volume importante de divisa”, tanto a fim de evitar uma crise na balança de pagamento, quanto para poder investir no desenvolvimento interno.

     Reassumir o controle do setor energético é substancial para a soberania e independência de um país. Entretanto, isso de nada adianta caso os recursos gerados por essas fontes não forem revertidos para a população através de investimento sistemático em políticas públicas. A Venezuela tem mostrado métodos para que a principal fonte de receita de um país, no caso venezuelano o petróleo, possa ser posto a serviço de sua população por meio de programas que visam fomentar políticas sociais não meramente assistencialistas, mas que mobilizem o povo e as organizações populares, e incentivem sua participação como sujeitos de tais programas. No caso venezuelano podemos citar as Missões Sociais, as Universidades Populares, os Conselhos Comunais, as Comunas e muitos outros.

    Os exemplos dos governos progressistas da Venezuela, Bolívia e Argentina, não somente têm contido o avanço do neoliberalismo em nosso continente, como também evidenciado que muitos dos danos das políticas econômicas neoliberais podem ser revertidos se houver vontade política para tal, principalmente porque qualquer decisão que sugira fortalecimento da soberania do país continua a receber apoio da maioria da sua população.

    Olhando para o Brasil – a partir do exemplo dos nossos hermanos – já no terceiro mandato do PT, vemos como, apesar do apoio que sem dúvida receberia da sua população, o governo brasileiro não mostra indícios de renacionalizar setores fundamentais privatizados durante o governo FHC, por exemplo, o setor de mineração. Está certo que o Brasil não levou a cabo as privatizações com tanto afinco como na Argentina, mas não nos esqueçamos que isso se deveu em muito à pressão exercida pelos setores populares, e não por intenções estratégicas de realizar uma política moderada de privatizações.

    O país, nos últimos anos, continua a camuflar esse regime de vendas de estatais. Por meio da estratégia de Parcerias Público-Privadas – a pele de cordeiro, o eufemismo usado sem parcimônia – o governo usa os créditos do BNDES para financiar grandes empresas privadas, sobretudo as empreiteiras que, engordando seus cofres com as licitações ganhas para obras do PAC, adquirem direitos de explorar por décadas os recursos naturais, destruindo o meio-ambiente, superexplorando a mão-de-obra dos trabalhadores e violando o direito dos povos originários de decidir sobre o destino dos seus territórios. E em muitos casos com risco zero para essas empresas, com o governo arcando com todos os prejuízos que venham a ocorrer.

    Quanto à dívida pública, ao contrário do Equador, que realizou uma auditoria à respeito e concluiu que há muito já havia pago grande parte dela, declarando que só aceitava entre 25 e 30% do valor dos títulos, continuamos a pagar altos juros, cortando, para manter nosso superávit fiscal, investimentos em políticas públicas e gastos sociais dos setores mais empobrecidos da população. Quase metade do orçamento público tem sido usado para pagar juros e amortizações da dívida pública.

    Numa conjuntura econômica como a atual, em que a Europa e EUA continuam mergulhados na crise desde 2008, o exemplo argentino aponta que pode haver sim alternativa aos países da periferia do euro, cujos governos têm aceitado todas as imposições de ajustes fiscais e cortes nas políticas públicas, obrigando, no limite do insustentável, suas populações a pagar com desemprego ainda mais impostos e privatizações os demandes dos bancos e de seus governos. Há, sim, uma primeira saída rumo a uma soberania: a moratória.

    O que falta é coragem política para os governos desses países seguirem os anseios de suas populações, que dado o seu descontentamento expresso em manifestações e greves, apoiarão medidas que enfrentem a voragem dos bancos credores e a pressão dos países centrais da zona do euro, que sediam esses bancos, rompendo com a União Europeia e com sua condição de Estados reféns do capitalismo financeiro.

   Em especial para os países periféricos da zona do euro, Buenos Aires tem mais a dizer sobre radicalização da sua soberania do que o nosso glorioso Brasil



segunda-feira, 19 de março de 2012

Pinheirinho: o Estado salvaguarda a propriedade.


As remoções no Brasil de populações de periferias, favelas, ocupações, comunidades ribeirinhas tradicionais, etc., é um processo cuja tendência será de intensificação ainda mais nos próximos anos. A política econômica neodesenvolvimentista do Estado Brasileiro, mais as grandes obras associadas direta e indiretamente aos megaeventos que ocorrerão nos próximos anos (Olimpíadas e Copa do Mundo), aquece a especulação imobiliária e impulsiona o processo de competição pela apropriação privada do território.

Esse processo não pode ser compreendido sem se atentar para o papel central do Estado brasileiro no seu fomento. O caso de Pinheirinho é, sem dúvida, paradigmática. E não somente por ter ocorrido no estado economicamente mais forte do país, tornando mais midiático um fenômeno que já vem ocorrendo em outras regiões, impulsionado nelas principalmente pelo governo federal. Mas por ser também um exemplo bem claro de como o Estado, por meio do seu aparato jurídico e repressor foi mobilizado para defender a propriedade privada de um megaespeculador que deve milhões para o Estado em impostos não pagos e já foi preso por especular na bolsa consigo mesmo (Naji Nahas emprestava dinheiro de bancos para comprar grandes quantidades ações usando contas correntes de diversas empresas que controlava, para induzir outros investidores a fazem o mesmo, aumentando artificialmente os preços acusado de criar empresas de fachadas), o que resultou numa condenação de 24 anos, revertida, claro, em instancias jurídicas superiores. Além disso, Naji Nahas é conhecido por criar, através de laranjas, empresas que compram suas dívidas com as empresas credoras; as empresas de fachada oferecem a compra imediata da dívida, mas por um preço abaixo do valor real do débito; ou seja, Nahas reduz o valor de suas dívidas tornando-se credor de si mesmo.

          Nove mil moradores, que apesar da completa ausência do Estado, construíram suas moradias e toda a infraestrutura de um bairro (rede de esgoto, ruas, rede elétrica, etc), e que por isso para ter suas casas regularizadas seria para o Estado um custo ínfimo, são removidos violentamente, com casos claros de violações de direitos humanos, para salvar a propriedade privada de um megaespeculador que responde a processos de várias ordens. Polícia e sistema jurídico de plantão para fazer valer a lei da propriedade privada independentemente de quem seja o detentor da propriedade.

Pinheirinho, mais uma vez, mostra que o Estado brasileiro continua sendo condição necessária para fazer valer incondicionalmente a lei da propriedade privada, mesmo que para isso seja preciso até mesmo destruir as condições básicas para que os explorados possam reproduzir minimamente a sua força de trabalho: moradia.

         O caso de Pinheirinho não é uma violação que deve ser reduzida a uma questão de governo: teria ocorrido porque São Paulo é governado pelo PSDB . Pode ser que se o PT estivesse governando São Paulo não teria ao menos ocorrido a remoção com o grau de barbaridade que foi. Contudo, esse modelo de remoção incondicional vem sendo aplicado pelo governo federal em vários locais do país, e em alguns locais com o mesmo grau de violência. A violência, sobretudo da polícia federal, na Bahia com o povo indígena tupinambá, por exemplo, continua e a sua razão é a mesma: a questão fundiária.

A remoção de favelas, comunidades ribeirinhas, povos originários vem ocorrendo com total consentimento do governo federal, e é a expressão de um modelo de desenvolvimento econômico impulsionado e defendido pelo próprio PT, e por parte significativa da intelectualidade de esquerda. A lógica de desenvolver a todo custo, e que o desenvolvimento trará necessariamente distribuição de renda, sem que seja necessário alterar no seu fundamento as causas históricas da desigualdade social brasileira, como a questão fundiária, é o projeto posto em prática pelo governo petista.

O que ideologicamente e na prática não se distingue muito do projeto dos militares. No caso da questão fundiária, inclusive, o projeto “de modernização conservadora” dos militares, de modernizar tecnologicamente a agricultura mantendo o latifúndio, encontrou sua consolidação definitiva no governo petista, que não somente assentou menos do que durante a ditadura, mas que fortaleceu de vez o agronegócio, tornando-o ainda mais central para a economia nacional, o que se materializa na dependência do país em relação às exportações de commodities agrícolas para uma balança comercial positiva. Não é por acaso que o arquiteto da “modernização conservadora”, Delfin Neto, ministro da Fazenda e depois da Agricultura durante a ditadura, tece sempre elogios à política econômica do governo petista e é colunista da principal revista governista de tiragem nacional.  

       Com a aproximação dos megaeventos, as remoções aumentarão ainda mais, e a violência de Estado recrudescerá, escancarando ainda mais a centralidade da questão territorial na luta de classe no Brasil.

  A criminalização dos movimentos sociais, com a repressão sistemática e imediata de qualquer manifestação de rua, impedindo que os setores populares organizados levem as suas demandas para as ruas, ocupando o espaço público, que é um direito constitucional, não deixa dúvidas de que estamos vivendo sob um estado de exceção, e que garantias constitucionais conquistadas com muita luta e resistência dos trabalhadores são simplesmente desprezadas pela própria entidade que, no marco da democracia capitalista, deveria garanti-las.

               A política urbana nas grandes cidades tem sido de expulsão sistemática  dos pobres dos espaços, de “higienização” dos centros e áreas de interesse imobiliário, elitizando e privatizando os espaços públicos. Incêndios criminosos de favelas, expulsão por elevamento dos aluguéis em uma região de interesse, remoções a força pelos aparatos de repressão aumentam a cada dia nas grandes cidades.

A violência que ocorreu em Pinheirinho está em total acordo com o projeto de desenvolvimento que vem sendo implementado, tendo no aumento do preço da terra, quer no campo quer na cidade, uma condição necessária.

O interesse do Estado e empresas por regiões ainda não exploradas, sobretudo as periferias das grandes cidades, onde se concentra a maioria da população brasileira excluída desse desenvolvimento, é o sinal mais evidente de que esse projeto está em franca ascensão, uma vez que o aumento da disputa pela apropriação privada do espaço é indicador de uma economia capitalista aquecida e em expansão.

A intervenção direta do Estado brasileiro na remoção de populações inteiras de seus lares para garantir o bom andamento da especulação imobiliária já é, sem dúvida, o principal problema posto para os movimentos populares das cidades brasileiras. E nos próximos anos será o terreno onde a luta de classes no Brasil estará mais acentuada. O impasse para os movimentos urbanos está posto. Resta saber se os movimentos serão capazes de se articular e consolidar uma frente nacional de resistência capaz de enfrentar um projeto de reprodução do capitalismo que o governo federal já definiu e para cuja realização mobilizará o que for necessário.

Por isso fica a pergunta: será Pinheirinho  um anúncio claro do que está por vir? 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Irã: prenúncio de mais uma invasão imperialista.



A guerra não declarada contra o Irã já ultrapassou há bom tempo os limites de uma guerra retórica. Desde os governos de Bush II, que na sua política de “guerra contra o terror” enquadrou o Irã no “eixo do mal”, até o governo Obama, os Estados Unidos conseguiram que a ONU passasse 4 sanções econômicas contra o Irã. Todas as sanções são justificadas com o mesmo argumento: o governo dos aiatolás está enriquecendo urânio com o propósito de construir armas nucleares. A última resolução, de 9 de junho de 2011, ampliou o escopo de sanções já aprovadas nas três resoluções anteriores. A resolução prevê punições a entidades estrangeiras que venham a vender petróleo refinado ao Irã, ou auxiliar a sua capacidade doméstica de refinamento. Países estão proibidos também de permitir que o Irã invista em suas plantas de enriquecimento nuclear, minas de urânio e outras tecnologias nucleares relacionadas e de venderem equipamento militar pesado para o país, como tanques, aviões, sistemas de mísseis, etc. Outro alvo de impacto das resoluções é sobre negócios e transações financeiras feitas pelo corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, cujos membros possuem várias empresas no setor de energia. 40 empresas estão na lista negra e o Banco Central Iraniano foi mencionado, seguido de um pedido para que os países “exercitem vigilância” ao negociar com ele. Agora, os Estados Unidos pressionam para que mais uma resolução seja votada, com o propósito de colocar entraves para o Banco Central do país, dificultando o pagamento de contas e estrangular as transações financeiras entre o Banco Central Iraniano e os bancos centrais dos outros países, além de restringir transações internacionais com outros bancos iranianos. A ameaça se estende com a possibilidade ainda de futuras sanções direcionadas especificamente para o petróleo iraniano. Os Estados Unidos ameaçam bloquear a importação de petróleo do Irã, o que, consequentemente, dificultaria a recolha de receitas da venda do petróleo, principal fonte de receita do país.

No teatro de informações e contra-informações, porta-vozes estadunidenses sustentam que o bloqueio às importações de petróleo ocorrerá caso o Irã continue com as ameaças de bloquear o estreito de Ormuz, pedaço de oceano entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, e por onde passam entre 30% e 40% de todo o petróleo consumido no mundo.

Mas para além da propaganda forjada na grande mídia internacional de uma suposta “ameaça iraniana” para a segurança da ordem internacional, o fato é que os Estados Unidos estão, por todos os meios, tentando forçar ações mais “ousadas” por parte do governo iraniano de forma a construir mais justificativas para uma futura invasão. Os Estados Unidos sabem que sanções econômicas nunca enfraquecem os regimes - quer ditatoriais quer não - que de alguma maneira se opõem a aceitar uma posição de governos clientelistas sob dominação estadunidense. Quanto ao enfraquecimento de um regime, sanções econômicas, de modo geral, se mostraram contra-produtivas. O que acaba por ocorrer é o fortalecimento do regime por maior apoio que passa a receber de sua população ou pelo aumento da repressão interna, que passa a justificar a repressão a qualquer movimento de oposição sob o argumento de que esses movimentos são financiados pelas forças imperialistas. Sanções sempre atacam mais a população do que o governo.

No Iraque, por exemplo, uma década de sanções sistemáticas, e muito mais pesadas das que estão sendo impostas ao Irã, foi razão direta da morte de milhares de crianças e do empobrecimento da maioria da população, e somente contribuiu para que a ditadura de Saddam se tornasse cada vez mais violenta e repressiva. Sanções estrangulam a população e fortalecem o regime.

Se sanções não vêm sendo uma estratégia eficaz de derrubar regimes não clientelistas, embora vendidas como tais, qual é então a razão real de os Estados Unidos, por meio das Nações Unidas, insistirem nessas medidas? Bom, dado os resultados, os objetivos parecem bem claros: punir diretamente a população pelo “mal” comportamento do regime. E aqui entenda-se “mal comportamento” por não servilismo e não participação na ordenação geopolítica imposta por Washington para a região. E, por meio dessa punição, levar o regime a “comportamentos” que alimentem a justificativa de uma invasão do país para “restabelecer” a suposta “estabilidade ameaçada”.

Não somente o petróleo é a razão do imperialismo estadunidense na região, mas sem dúvida é a questão fundamental. Uma década de invasão do Iraque não trouxe estabilidade interna ao país e para a região. Muito pelo contrário. O Iraque está hoje mergulhado em conflitos sectários, com o pouco que ainda existia de infraestrutura e serviços públicos esfacelados, aumento do empobrecimento da população, aproximadamente um milhão de mortos diretamente por razão da guerra, a proliferação de organizações terroristas internacionais no país (organizações cuja presença era praticamente inexistente antes da invasão) e um governo fantoche que nem sequer consegue gerenciar os conflitos de poder entre seus quadros. Contudo, apesar do caos em que se encontra o Iraque e dos gastos exorbitantes com a guerra – em grande parte pagos com dinheiro do contribuinte estadunidense - as fontes de petróleo do Iraque, segundo maior produtor do mundo, estão quase todas sob controle das grandes corporações de petróleo ocidentais (Shell, BP, ExxonMobil). De acordo com a Administração de Informação de Energia dos Estados Unidos - só para se ter uma ideia do potencial de reservas em petróleo em solo iraquiano - o Iraque possui em reservas estimadamente 112 bilhões de barris, e calcula-se ainda que 90% das reservas continuam não exploradas em decorrência das sanções econômicas e da guerra. As gigantes estadunidenses do petróleo estavam fora do Iraque desde 1973 até a invasão do país em 2003. Desde a invasão, essas corporações conseguiram os principais e mais lucrativos contratos de exploração do petróleo e gás da região.

As relações amigáveis (de tempos) entre EUA e a ditadura saudita, regime de longe o mais repressor na região, asseguram a hegemonia das corporações de petróleo estadunidenses no país, que é o maior produtor de petróleo no mundo.  E, com a invasão estadunidense do Iraque e o controle do petróleo pelas corporações ocidentais, os ianques consolidam a sua hegemonia sobre a produção e comercialização do petróleo do Oriente Médio.

Mas, apesar da crise econômica em que se encontra, com uma dívida pública imenso, aproximadamente 10% da população desempregada, ainda afogado no Afeganistão, etc., os Estados Unidos mostram, apesar do ceticismo de muitos analistas, uma disposição para, a curto ou médio prazos, invadir o terceiro maior produtor de petróleo do mundo. Se o governo Obama não fez ainda, explicitamente, ao menos na esfera da retórica dos pronunciamentos públicos, uma ameaça direta de possível invasão, a maioria dos candidatos republicanos, na sua corrida para ver quem enfrentará Obama nas eleições presidenciais de 2012, não mede palavras quando o assunto é Irã: atualmente o governo dos aiatolás é a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos e do mundo, e se preciso haverá uma incursão militar. Quem ainda pensa que uma invasão do Irã está longe de ocorrer, dado, sobretudo, o contexto da crise econômica por que passa os EUA e o mundo, subestimam o poder que o complexo industrial bélico estadunidense tem para pressionar o governo dos EUA a estar constantemente em guerra. Os Estados Unidos não sairiam do Iraque e anunciariam a saída do Afeganistão para 2014, sem que tivessem no horizonte uma nova incursão militar para um tempo não tão distante.

Com os poços de petróleo da Arábia Saudita e Iraque assegurados, o que falta para consolidar de vez a hegemonia ocidental no controle do petróleo do Oriente Médio seria justamente o petróleo iraniano. Mas como criar as condições para que as corporações estadunidenses sejam hegemônicas no Irã? Para que isso ocorra, dado a dificuldade de ascensão de um governo clientelista no Irã, parece não haver outra alternativa que não a invasão militar. Até mesmo para aqueles que gostam de ver na política externa estadunidense para Oriente Médio sempre a sombra do sionismo, ou seja, do famoso lobby israelense, creio que um pouco mais de análise revela que uma futura invasão do Irã pelos EUA responde muito mais à estratégia econômica e militar do próprio EUA, do que uma suposta pressão de Israel. É muito provável que, caso se inicie os preparativos mais concretos para a invasão, principalmente com a tentativa de votação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizando uma intervenção, algum país com poder de veto vote contra. Contudo, lembremos que os Estados Unidos invadiram o Iraque mesmo sendo vetada a invasão no Conselho de Segurança. Portanto, não nos surpreendamos se isso se repetir no caso do Irã. O que fica ainda por ver é se países como a China (que importa petróleo iraniano e investe fortemente na construção de infraestrutura no país) e Rússia se oporão de forma mais incisiva, ao menos no campo da diplomacia, tentando inclusive intervir para que negociações sejam estabelecidas. Contudo, mais uma vez, lembremos que no ano passado Brasil e Turquia, ainda que longe de terem o poder de barganha de uma China, realizaram um acordo com o Irã, acordo inclusive proposto pelo próprio governo dos Estados Unidos, segundo o qual o Irã se comprometia a transportar parte do seu urânio de baixo enriquecimento para ser armazenado na Turquia, em troca de combustível nuclear para pesquisas na área médica. Mais detalhadamente, o acordo demandava que o Irã enviasse 1.2 toneladas de urânio, o que era aproximadamente metade do que ele possuía, para a Turquia, sob supervisão da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica). Em troca, o Irã receberia, dentro de um ano, 120 kg de combustível altamente enriquecido de alguns países signatários do tratado de não proliferação de armas nucleares (dentre eles, EUA, Rússia e França). Todavia, assim que o acordo foi consolidado, Washington declarou ceticismo em relação a sua eficácia, e manteve a campanha por mais sanções econômicas. O que provou que os interesses estadunidenses de pressão sobre o Irã não se reduziam à questão nuclear.

A população iraniana parece muito ciente das ameaças pelas quais passa o seu país, e da possibilidade de num futuro próximo sofrer uma intervenção da maior potência bélica do globo, que possui o maior arsenal nuclear existente e cujos gastos militares anuais somam sozinhos entre 43% e 46% do total mundial, ou seja, quase a metade da soma dos gastos militares de todos os países do mundo juntos. Mesmo os movimentos de oposição ao regime, dentre eles o maior - o Movimento Verde - que coordenou as manifestações em massa em 2009, duramente reprimidas, de oposição ao regime – opõem-se às sanções, que visam excluir o Irã do sistema financeiro internacional. O Movimento Verde abertamente declarou que essas sanções isolam e estrangulam economicamente o país, afetando diretamente a vida da sua população e fortalecendo o regime.

Certamente que o Irã não é o Iraque. O Irã é o país com a maior população xiita, atualmente tem uma influencia que vem crescendo na ordem geopolítica da região, e, apesar de nunca ter realizado incursões militares para além do seu território, dá suporte a grupos e movimentos de resistência nacional, como o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza, e se opõe declaradamente ao estado de Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino. Além de, que é sempre oportuno enfatizar, o regime dos aiatolás ter ascendido ao poder como decorrência de uma revolução que, em 1979, depôs o regime do Xá, que em 1953 derrubou, com apoio dos Estados Unidos, um governo nacionalista, laico e eleito democraticamente que havia nacionalizado o petróleo do país. Contudo, apesar da influência política do Irã, que em muito é gerada pela atual geopolítica da região, militarmente Teerã está longe de ser uma força preponderante.   O Irã é um dos países na região com o menor orçamento militar, 7 bilhões de dólares ao ano. Israel investe anualmente 12 bilhões de dólares (único país na região que possui armas nucleares, estima-se que aproximadamente 200 ogivas nucleares) e a Arábia Saudita 25 bilhões.

Ninguém deseja que o Irã desenvolva armas nucleares, mas um raciocínio e postura, no contexto atual razoáveis, dos seus líderes, é que, com os resultados da invasão do Iraque e a ainda presença no Afeganistão - o Iraque fica a oeste da fronteira iraniana e o Afeganistão a leste – e as tentativas internacionais de isolar o Irã economicamente e a sua soberania ameaçada cada vez mais,  parece que a única alternativa que restaria, para impedir uma invasão futura do país, é o desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares.

Historicamente, a intervenção direta e indireta dos Estados Unidos na região tem sido de longe a causa principal da instabilidade no Oriente Médio. E a atual guerra retórica e econômica contra o Irã, seguida ainda mais da guerra secreta, que já levou ao assassinato de 4 cientistas iranianos (independentemente de se foi a CIA e/ou serviço secreto israelense ou quem quer que seja) é mais uma etapa da tentativa estadunidense de ingerência imperial da região. A posição mais incisiva dos EUA no último mês aponta muito no sentido de que o império, sobretudo com as revoluções e levantes em curso no norte da África e Oriente Médio, entende que sua hegemonia possa estar encontrando sérios limites. A situação interna do Egito continua instável, com uma revolução ainda em curso, e, consequentemente, não sabemos como a sua política externa ficará nos próximos anos: se continuará subserviente ao império ou se terá uma posição mais independente. O Yemen, Qatar, Síria, etc., estão longe de uma resolução, a curto prazo, para a crise política e social por que passam. Até mesmo a direita israelense, atualmente no poder, não tem dado ouvidos para alguns posicionamentos de Washington na questão palestina.

Tudo ainda está muito incerto. E a ordenação geopolítica da região está passando por transformações que ainda não apontam para um horizonte previsível. A OTAN, com apoio um tanto distanciado dos Estados Unidos, derrubou a ditadura de Kadafi, mas a condição política instável da Líbia pode pôr entraves à ganância das corporações do petróleo ocidentais pelo ouro negro líbio.

Mas mesmo nesta conjuntura de transformações impulsionadas em parte pela voz dos povos, que mais uma vez se fazem ouvir, não parece estar freando as intenções estadunidenses de invadir o Irã. Será que esta década terá de conviver com mais uma intervenção criminosa do imperialismo ianque na região? A única certeza é que uma nova incursão militar estadunidense na região deixará o mundo mais violente e inseguro, e a população do império mais vulnerável.