A guerra não declarada contra o Irã já ultrapassou há bom tempo os limites de uma guerra retórica. Desde os governos de Bush II, que na sua política de “guerra contra o terror” enquadrou o Irã no “eixo do mal”, até o governo Obama, os Estados Unidos conseguiram que a ONU passasse 4 sanções econômicas contra o Irã. Todas as sanções são justificadas com o mesmo argumento: o governo dos aiatolás está enriquecendo urânio com o propósito de construir armas nucleares. A última resolução, de 9 de junho de 2011, ampliou o escopo de sanções já aprovadas nas três resoluções anteriores. A resolução prevê punições a entidades estrangeiras que venham a vender petróleo refinado ao Irã, ou auxiliar a sua capacidade doméstica de refinamento. Países estão proibidos também de permitir que o Irã invista em suas plantas de enriquecimento nuclear, minas de urânio e outras tecnologias nucleares relacionadas e de venderem equipamento militar pesado para o país, como tanques, aviões, sistemas de mísseis, etc. Outro alvo de impacto das resoluções é sobre negócios e transações financeiras feitas pelo corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, cujos membros possuem várias empresas no setor de energia. 40 empresas estão na lista negra e o Banco Central Iraniano foi mencionado, seguido de um pedido para que os países “exercitem vigilância” ao negociar com ele. Agora, os Estados Unidos pressionam para que mais uma resolução seja votada, com o propósito de colocar entraves para o Banco Central do país, dificultando o pagamento de contas e estrangular as transações financeiras entre o Banco Central Iraniano e os bancos centrais dos outros países, além de restringir transações internacionais com outros bancos iranianos. A ameaça se estende com a possibilidade ainda de futuras sanções direcionadas especificamente para o petróleo iraniano. Os Estados Unidos ameaçam bloquear a importação de petróleo do Irã, o que, consequentemente, dificultaria a recolha de receitas da venda do petróleo, principal fonte de receita do país.
No teatro de informações e contra-informações, porta-vozes estadunidenses sustentam que o bloqueio às importações de petróleo ocorrerá caso o Irã continue com as ameaças de bloquear o estreito de Ormuz, pedaço de oceano entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, e por onde passam entre 30% e 40% de todo o petróleo consumido no mundo.
Mas para além da propaganda forjada na grande mídia internacional de uma suposta “ameaça iraniana” para a segurança da ordem internacional, o fato é que os Estados Unidos estão, por todos os meios, tentando forçar ações mais “ousadas” por parte do governo iraniano de forma a construir mais justificativas para uma futura invasão. Os Estados Unidos sabem que sanções econômicas nunca enfraquecem os regimes - quer ditatoriais quer não - que de alguma maneira se opõem a aceitar uma posição de governos clientelistas sob dominação estadunidense. Quanto ao enfraquecimento de um regime, sanções econômicas, de modo geral, se mostraram contra-produtivas. O que acaba por ocorrer é o fortalecimento do regime por maior apoio que passa a receber de sua população ou pelo aumento da repressão interna, que passa a justificar a repressão a qualquer movimento de oposição sob o argumento de que esses movimentos são financiados pelas forças imperialistas. Sanções sempre atacam mais a população do que o governo.
No Iraque, por exemplo, uma década de sanções sistemáticas, e muito mais pesadas das que estão sendo impostas ao Irã, foi razão direta da morte de milhares de crianças e do empobrecimento da maioria da população, e somente contribuiu para que a ditadura de Saddam se tornasse cada vez mais violenta e repressiva. Sanções estrangulam a população e fortalecem o regime.
Se sanções não vêm sendo uma estratégia eficaz de derrubar regimes não clientelistas, embora vendidas como tais, qual é então a razão real de os Estados Unidos, por meio das Nações Unidas, insistirem nessas medidas? Bom, dado os resultados, os objetivos parecem bem claros: punir diretamente a população pelo “mal” comportamento do regime. E aqui entenda-se “mal comportamento” por não servilismo e não participação na ordenação geopolítica imposta por Washington para a região. E, por meio dessa punição, levar o regime a “comportamentos” que alimentem a justificativa de uma invasão do país para “restabelecer” a suposta “estabilidade ameaçada”.
Não somente o petróleo é a razão do imperialismo estadunidense na região, mas sem dúvida é a questão fundamental. Uma década de invasão do Iraque não trouxe estabilidade interna ao país e para a região. Muito pelo contrário. O Iraque está hoje mergulhado em conflitos sectários, com o pouco que ainda existia de infraestrutura e serviços públicos esfacelados, aumento do empobrecimento da população, aproximadamente um milhão de mortos diretamente por razão da guerra, a proliferação de organizações terroristas internacionais no país (organizações cuja presença era praticamente inexistente antes da invasão) e um governo fantoche que nem sequer consegue gerenciar os conflitos de poder entre seus quadros. Contudo, apesar do caos em que se encontra o Iraque e dos gastos exorbitantes com a guerra – em grande parte pagos com dinheiro do contribuinte estadunidense - as fontes de petróleo do Iraque, segundo maior produtor do mundo, estão quase todas sob controle das grandes corporações de petróleo ocidentais (Shell, BP, ExxonMobil). De acordo com a Administração de Informação de Energia dos Estados Unidos - só para se ter uma ideia do potencial de reservas em petróleo em solo iraquiano - o Iraque possui em reservas estimadamente 112 bilhões de barris, e calcula-se ainda que 90% das reservas continuam não exploradas em decorrência das sanções econômicas e da guerra. As gigantes estadunidenses do petróleo estavam fora do Iraque desde 1973 até a invasão do país em 2003. Desde a invasão, essas corporações conseguiram os principais e mais lucrativos contratos de exploração do petróleo e gás da região.
As relações amigáveis (de tempos) entre EUA e a ditadura saudita, regime de longe o mais repressor na região, asseguram a hegemonia das corporações de petróleo estadunidenses no país, que é o maior produtor de petróleo no mundo. E, com a invasão estadunidense do Iraque e o controle do petróleo pelas corporações ocidentais, os ianques consolidam a sua hegemonia sobre a produção e comercialização do petróleo do Oriente Médio.
Mas, apesar da crise econômica em que se encontra, com uma dívida pública imenso, aproximadamente 10% da população desempregada, ainda afogado no Afeganistão, etc., os Estados Unidos mostram, apesar do ceticismo de muitos analistas, uma disposição para, a curto ou médio prazos, invadir o terceiro maior produtor de petróleo do mundo. Se o governo Obama não fez ainda, explicitamente, ao menos na esfera da retórica dos pronunciamentos públicos, uma ameaça direta de possível invasão, a maioria dos candidatos republicanos, na sua corrida para ver quem enfrentará Obama nas eleições presidenciais de 2012, não mede palavras quando o assunto é Irã: atualmente o governo dos aiatolás é a maior ameaça à segurança dos Estados Unidos e do mundo, e se preciso haverá uma incursão militar. Quem ainda pensa que uma invasão do Irã está longe de ocorrer, dado, sobretudo, o contexto da crise econômica por que passa os EUA e o mundo, subestimam o poder que o complexo industrial bélico estadunidense tem para pressionar o governo dos EUA a estar constantemente em guerra. Os Estados Unidos não sairiam do Iraque e anunciariam a saída do Afeganistão para 2014, sem que tivessem no horizonte uma nova incursão militar para um tempo não tão distante.
Com os poços de petróleo da Arábia Saudita e Iraque assegurados, o que falta para consolidar de vez a hegemonia ocidental no controle do petróleo do Oriente Médio seria justamente o petróleo iraniano. Mas como criar as condições para que as corporações estadunidenses sejam hegemônicas no Irã? Para que isso ocorra, dado a dificuldade de ascensão de um governo clientelista no Irã, parece não haver outra alternativa que não a invasão militar. Até mesmo para aqueles que gostam de ver na política externa estadunidense para Oriente Médio sempre a sombra do sionismo, ou seja, do famoso lobby israelense, creio que um pouco mais de análise revela que uma futura invasão do Irã pelos EUA responde muito mais à estratégia econômica e militar do próprio EUA, do que uma suposta pressão de Israel. É muito provável que, caso se inicie os preparativos mais concretos para a invasão, principalmente com a tentativa de votação de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU autorizando uma intervenção, algum país com poder de veto vote contra. Contudo, lembremos que os Estados Unidos invadiram o Iraque mesmo sendo vetada a invasão no Conselho de Segurança. Portanto, não nos surpreendamos se isso se repetir no caso do Irã. O que fica ainda por ver é se países como a China (que importa petróleo iraniano e investe fortemente na construção de infraestrutura no país) e Rússia se oporão de forma mais incisiva, ao menos no campo da diplomacia, tentando inclusive intervir para que negociações sejam estabelecidas. Contudo, mais uma vez, lembremos que no ano passado Brasil e Turquia, ainda que longe de terem o poder de barganha de uma China, realizaram um acordo com o Irã, acordo inclusive proposto pelo próprio governo dos Estados Unidos, segundo o qual o Irã se comprometia a transportar parte do seu urânio de baixo enriquecimento para ser armazenado na Turquia, em troca de combustível nuclear para pesquisas na área médica. Mais detalhadamente, o acordo demandava que o Irã enviasse 1.2 toneladas de urânio, o que era aproximadamente metade do que ele possuía, para a Turquia, sob supervisão da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica). Em troca, o Irã receberia, dentro de um ano, 120 kg de combustível altamente enriquecido de alguns países signatários do tratado de não proliferação de armas nucleares (dentre eles, EUA, Rússia e França). Todavia, assim que o acordo foi consolidado, Washington declarou ceticismo em relação a sua eficácia, e manteve a campanha por mais sanções econômicas. O que provou que os interesses estadunidenses de pressão sobre o Irã não se reduziam à questão nuclear.
A população iraniana parece muito ciente das ameaças pelas quais passa o seu país, e da possibilidade de num futuro próximo sofrer uma intervenção da maior potência bélica do globo, que possui o maior arsenal nuclear existente e cujos gastos militares anuais somam sozinhos entre 43% e 46% do total mundial, ou seja, quase a metade da soma dos gastos militares de todos os países do mundo juntos. Mesmo os movimentos de oposição ao regime, dentre eles o maior - o Movimento Verde - que coordenou as manifestações em massa em 2009, duramente reprimidas, de oposição ao regime – opõem-se às sanções, que visam excluir o Irã do sistema financeiro internacional. O Movimento Verde abertamente declarou que essas sanções isolam e estrangulam economicamente o país, afetando diretamente a vida da sua população e fortalecendo o regime.
Certamente que o Irã não é o Iraque. O Irã é o país com a maior população xiita, atualmente tem uma influencia que vem crescendo na ordem geopolítica da região, e, apesar de nunca ter realizado incursões militares para além do seu território, dá suporte a grupos e movimentos de resistência nacional, como o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza, e se opõe declaradamente ao estado de Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino. Além de, que é sempre oportuno enfatizar, o regime dos aiatolás ter ascendido ao poder como decorrência de uma revolução que, em 1979, depôs o regime do Xá, que em 1953 derrubou, com apoio dos Estados Unidos, um governo nacionalista, laico e eleito democraticamente que havia nacionalizado o petróleo do país. Contudo, apesar da influência política do Irã, que em muito é gerada pela atual geopolítica da região, militarmente Teerã está longe de ser uma força preponderante. O Irã é um dos países na região com o menor orçamento militar, 7 bilhões de dólares ao ano. Israel investe anualmente 12 bilhões de dólares (único país na região que possui armas nucleares, estima-se que aproximadamente 200 ogivas nucleares) e a Arábia Saudita 25 bilhões.
Ninguém deseja que o Irã desenvolva armas nucleares, mas um raciocínio e postura, no contexto atual razoáveis, dos seus líderes, é que, com os resultados da invasão do Iraque e a ainda presença no Afeganistão - o Iraque fica a oeste da fronteira iraniana e o Afeganistão a leste – e as tentativas internacionais de isolar o Irã economicamente e a sua soberania ameaçada cada vez mais, parece que a única alternativa que restaria, para impedir uma invasão futura do país, é o desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares.
Historicamente, a intervenção direta e indireta dos Estados Unidos na região tem sido de longe a causa principal da instabilidade no Oriente Médio. E a atual guerra retórica e econômica contra o Irã, seguida ainda mais da guerra secreta, que já levou ao assassinato de 4 cientistas iranianos (independentemente de se foi a CIA e/ou serviço secreto israelense ou quem quer que seja) é mais uma etapa da tentativa estadunidense de ingerência imperial da região. A posição mais incisiva dos EUA no último mês aponta muito no sentido de que o império, sobretudo com as revoluções e levantes em curso no norte da África e Oriente Médio, entende que sua hegemonia possa estar encontrando sérios limites. A situação interna do Egito continua instável, com uma revolução ainda em curso, e, consequentemente, não sabemos como a sua política externa ficará nos próximos anos: se continuará subserviente ao império ou se terá uma posição mais independente. O Yemen, Qatar, Síria, etc., estão longe de uma resolução, a curto prazo, para a crise política e social por que passam. Até mesmo a direita israelense, atualmente no poder, não tem dado ouvidos para alguns posicionamentos de Washington na questão palestina.
Tudo ainda está muito incerto. E a ordenação geopolítica da região está passando por transformações que ainda não apontam para um horizonte previsível. A OTAN, com apoio um tanto distanciado dos Estados Unidos, derrubou a ditadura de Kadafi, mas a condição política instável da Líbia pode pôr entraves à ganância das corporações do petróleo ocidentais pelo ouro negro líbio.
Mas mesmo nesta conjuntura de transformações impulsionadas em parte pela voz dos povos, que mais uma vez se fazem ouvir, não parece estar freando as intenções estadunidenses de invadir o Irã. Será que esta década terá de conviver com mais uma intervenção criminosa do imperialismo ianque na região? A única certeza é que uma nova incursão militar estadunidense na região deixará o mundo mais violente e inseguro, e a população do império mais vulnerável.