sábado, 26 de junho de 2010

Colômbia: novo presidente, mesmo governo.

         A vitória na eleição presidencial colombiana de Juan Manuel Santos, ex-ministro da defesa do governo Uribe, confirma o já esperado: a continuação, por mais quatro anos, das políticas do atual regime. Embora Santos tenha sido eleito com a esmagadora maioria dos votos, 70%, contra 27% do segundo colocado, o candidato pelo Partido Verde, Antanas Mockus, duas vezes prefeito de Bogotá, esses números são apenas parte da história. O outro lado é que 60% dos colombianos não foram às urnas e aproximadamente quinhentos mil votaram em branco. Ocorreram também relatos de que populações pobres de deslocados internos foram induzidas a votar para Santos sob ameaça de perderem os poucos auxílios sociais concedidos pelo governo Uribe.
       O que mostra a descrença de parte significativa da população em relação à situação política atual do país. Apesar de pesquisas de voto, antes do primeiro turno, terem apontado para um quase empate técnico entre Santos e Mockus, os resultados já do primeiro turno revelaram a falsidade de tais pesquisas. Gustavo Petro (PDA), candidato pelo Polo Democrático Alternativo, que ocupa 7,62% das cadeiras no Congresso colombiano, afirmou, após à vitória de Santos, que o establishment de Bogotá manipulou as pesquisas de opinião, apresentando o candidato do Partido Verde como próximo de Santos na pesquisa, de maneira a fazer com que aparentasse haver legitimidade em uma eleição que muitos cidadãos colombianos já davam como desde o começo definida, como as abstenções e votos nulos sugerem.
       Santos, quando ministro da defesa, esteve à frente da principal agenda dos oito anos do governo Uribe: a postura de solução unicamente militar, sob forte apoio financeiro dos Estados Unidos, para os conflitos da região. O futuro presidente, cuja família, junto com grupos espanhóis, controla parte da mídia corporativa do país, foi eleito à sombra de Uribe. Na verdade, Uribe só não foi candidato novamente, porque a Suprema Corte colombiana vetou uma proposta do governo de criação de uma emenda na Constituição que autorizasse que Uribe concorresse pela terceira vez. Como no Brasil, a constituição colombiana apenas permite dois mandatos consecutivos.
       O orgulho de Santos ao ver seu país ser descrito como Israel da América Latina, descrição sem o mínimo de fundamento na realidade, evidencia as suas crenças em relação ao papel regional e internacional da Colômbia como principal aliado dos Estados Unidos na América do Sul, a sua disposição de continuar comprometido com os EUA e levar a cabo a postura intransigente do governo Uribe na região, como quando realizou incursões militares em solo equatoriano, e mais recentemente o acordo com Washington, sem consultar os países vizinhos, que autoriza que os EUA use 7 bases militares na Colômbia.
      Uribe deixa para o seu fiel sucessor um país com o maior índice de homicídios do mundo, maiores índices de violação de direitos humanos no continente, 7 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, o segundo maior número de deslocados internos (mais de 4 milhões de seres humanos, metade dos quais apenas no governo Uribe, expulsos de suas terras por causa de lutas econômicas e políticas pelo controle de regiões,  fato agravado ainda mais pelas fumigações, que, sob o pretexto do governo de combater as plantações de coca, envenenaram terras de vários camponeses, inviabilizando o seu cultivo), atrás apenas do Sudão, 13% de desemprego, 58% da força de trabalho no mercado informal, 5.000 civis assassinados nos últimos anos, grande parte por forças militares do governo, para aumentar os números do governo no desempenho da suposta guerra contra o narcotráfico e o terrorismo, etc.
      A atual situação colombiana, com a duplicação do número de milhares de indígenas, afro-descendentes e campesinos expulsos de suas terras, 40 sindicalistas assassinados somente no ano passado, e neste ano já 31, está intimamente ligada ao Plano Colômbia, acordo de ajuda militar dos EUA à Colômbia como parte da "guerra" contra as drogas. Embora desde a década de 1990 a Colômbia tem sido o maior recipiente de ajuda e treinamento militar dos Estados Unidos, com o Plano Colômbia a ajuda em dinheiro aumentou consideravelmente. Como início do plano, a Colômbia recebeu, em 2000, 3.5 bilhões de dólares para usar no “combate” às drogas. Desde então, a cada ano, o país recebe de Washington uma quantia crescente por ano em ajuda militar. Mais detalhadamente, em 2002 foram 371.74 milhões, em 2003 605.1 milhões, em 2005 574,15 milhões, etc.
     Vendido como um plano de combate ao narcotráfico, e após 11 de setembro, como também combate ao terrorismo, o Plano Colômbia é um componente de um objetivo maior de ampliar a presença militar estadunidense na região andina, de modo a garantir a proteção de recursos naturais de interesse dos Estados Unidos. As drogas e o terrorismo não são senão um meio de justificar a presença militar estadunidense na região. Ora, a Colômbia é o maior exportador de cocaína do mundo, e o Afeganistão o maior de heroína, e ambos estão sob presença militar há um bom tempo dos Estados Unidos, maior consumidor de drogas ilícitas do mundo. E nem por isso esses países deixaram de ser os maiores exportadores dessas drogas.
     Somente em 2004 o número de colombianos deslocados pela violência foi de 280.000 pessoas. A retirada de camponeses das suas terras, que já não são muitas - pois na Colômbia 53% das terras estão em posse de 1.8 da população - tem por finalidade outras que não contra-atacar o narcotráfico. A fumigação de terras em zonas rurais, sobretudo no sul da Colômbia - região historicamente negligenciada e esquecida pelo poder central - feita por empresas de defesa privadas contratadas pelo Pentágono, tem destruído dezenas de hectares de plantações de alimentos, contaminando o solo, a água e o ar na região. As fumigações destroem a diversidade natural, tornando inviável a agricultura na região, expulsando assim os camponeses e preparando o terreno para expropriação dos recursos naturais por parte das transnacionais estadunidenses.
       A privatização das operações militares na Colômbia, que vai desde serviços de inteligência e logística, aviões que fumigam com veneno as áreas rurais, até equipes de resgate, também faz parte de uma prática do governo estadunidense em todas as regiões em que está presente militarmente, principalmente Iraque e Afeganistão. A conseqüência disso é que não há um controle do congresso dos EUA sobre as atividades dessas empresas e a transparência das suas ações é quase zero, pois podem esconder informações sob o pretexto de preservar preocupações de ordem privada, etc. Com isso, a pressão da sociedade civil em relação às atrocidades cometidas que vazam para a opinião pública é diminuída, pois sempre se pode culpar a empresa contratada pelos erros, e não as forças armadas. A Dycorp Company, Northrop Grumman, Eagle Aviation, são apenas algumas das empresas atuando atualmente na Colômbia.
     Os grupos paramilitares, com os quais já há uma longa história de colaboração por parte das forças de segurança governamentais (inclusive já vistos por muitos colombianos como o braço ilegal armado do Estado), assim como os grupos guerrilheiros, têm sido, em certa medida, um obstáculo à implementação dos acordos de livre comércio entre USA e Colômbia. Muitas empresas estadunidenses têm que pagar dinheiro a grupos militares ilegais para receber proteção.
      A presença militar, sob o pretexto da guerra contra o terror e o narcotráfico, é um meio de assegurar o aprofundamento do projeto de livre mercado na região, que consiste na expropriação transnacional dos recursos naturais e a redução dos colombianos a meros consumidores de produtos estadunidenses subsidiados. Que é o mesmo que tem ocorrido com todos os países na América Latina que implementaram políticas econômicas de livre comércio com os Estados Unidos. Basta ver o México, que após o NAFTA, de grande produtor de milho, principal produto da dieta da população, sobretudo a do campo, virou importador de milho subsidiado estadunidense, acabando com o mercado interno de milho e lançando vários camponeses na miséria e na fome. O mesmo com o Haiti, que, durante a administração Clinton, passou a importar todo seu arroz dos Estados Unidos, causando a falência de vários agricultores haitianos cujo sustento vinha da plantação de arroz. Assim, em geral o que ocorre é que grande parte dessa população camponesa empobrecida migra para os grandes centros aumentando a população favelizada desses países.
     A circulação descontrolada de capital nesses países, que é o feito, claro, da implementação de políticas econômicas neoliberais - políticas que têm, de algum modo, a sua contraparte militar, na Colômbia sendo mais forte e sistemática do que em outros países da região -, tem acelerado a expropriação de recursos naturais, o que aumenta a ambição pelas terras dos indígenas, afro-descendentes e camponeses em geral.
     Uma outra questão, talvez a pior, que tem se intensificado desde o começo da implementação do neoliberalismo na Colômbia, é a perseguição e o assassinato de integrantes de movimentos sociais que tentam abrir espaço para uma oposição não violenta. Os sindicatos, que são uma das bases da organização social com mais poder de pressionar o estado e reivindicar direitos sociais, têm sido atacados por todos os lados, não somente pelo governo. Os paramilitares acusam vários líderes sindicais de ligação com as FARC, e, em contrapartida, as FARC os acusam de estarem com o governo por não apoiarem a luta armada.
     A perseguição sistemática que, desde 1986, ano da criação da Central Única dos Trabalhadores Colombianos, resultou no assassinato de mais de 4.000 sindicalistas, levou não somente ao enfraquecimento, evidentemente, das organizações sindicais na Colômbia, mas também de qualquer movimento social organizado. O assassinato de pessoas que tentam agir democraticamente dentro dos espaços da democracia liberal alastra o medo, e afasta a população da arena política, sem a qual não existe exercício da democracia. Não há democracia quando é permitido que se fale, mas dependendo do que se fala você é assassinado ao virar as costas.
     O acordo, sem consultar os países da região, para a transformação de bases militares colombianas em bases militares estadunidenses, é a expressão de mais um aprofundamento e expansão do Plano Colômbia para toda a região andina. Os oito anos de governo Uribe, certamente o governo mais clientelista pelo menos na história contemporânea da Colômbia, não somente foi extremamente prejudicial para a população colombiana, como também para segurança na região. Seria muita inocência acreditar que a propaganda de combate ao narcotráfico é verdadeira, quando ela parte de um governo cujo próprio presidente, hoje apresentado pelo governo estadunidense como parceiro chave na guerra contra as drogas, foi acusado de ter tido ligações com o narcotráfico. E o que é mais agravante: essa acusação foi feita em um documento secreto de 1991, da Agencia de Defesa dos Estados Unidos. O documento foi tornado público somente em 2004, pela The National Security Archive (Arquivo de Segurança Nacional), um instituto de pesquisa não governamental, localizado na Universidade George Washington, que coleta e torna de domínio público documentos liberados em decorrência do Ato de Liberdade de Informação. Nele Uribe é acusado de ligação com o cartel de Medellín.
       Está claro que o Plano Colômbia tem se mostrado uma estratégia de guerra sob auspício dos Estados Unidos, e como tal, não respeita acordos sob as cúpulas das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos. As bases colocarão em risco a soberania dos estados vizinhos, num momento em que muitos países da América Latina buscam o estabelecimento de uma maior unidade comercial e cultural na região, menos dependência e mais diversificação nas parcerias econômicas.
       Os quatro próximos anos de continuação das mesmas políticas serão catastróficos tanto para a situação doméstica da Colômbia quanto para a região. Apesar de um futuro próximo escuro para a Colômbia, ainda há, no país, muitas comunidades em resistência, movimentos sociais e organizações dispostas a buscar uma saída política para os problemas do país. Mas fica a pergunta: em face da violência que esses movimentos têm sofrido por parte do Estado, dos grupos paramilitares e guerrilheiros, será possível que eles cresçam ao ponto de congregarem forças para uma nova saída política para a Colômbia? Só a sociedade colombiana será capaz de nos dizer isso, mas, ao menos para os quatro próximos anos, não poderemos deixar de ser pessimistas sobre os prováveis desdobramentos da continuação das políticas arquitetadas pela administração Uribe.

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Algumas Fontes:
 
1. Documento de 1991 da Agência de Defesa dos Estados Unidos, no qual Uribe é acusado de relação com o narcotráfico: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB131/index.htm ;
2. Documento de 1997 da Agência de Defesa dos Estados Unidos, no qual são apresentadas evidências de relações de aliança do exército colombiano com grupos paramilitares:  http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB166/index.htm#docs ;
3. Colombia IDPs 'face vote abuse':  http://english.aljazeera.net/focus/2010/05/20105251832686557.html ;
4. Ex-defense chief wins Colombia Vote: http://english.aljazeera.net/news/americas/2010/06/2010620213922101559.html ;
5. Documentário sobre o Plano Colômbia:  Empire in the Andes http://freedocumentaries.org/teatro.php?filmID=310&lan=en&size=big .

terça-feira, 15 de junho de 2010

Mais sobre a punição coletiva aos habitantes de Gaza.

        O jornal McClaTchy expôs recentemente o conteúdo de um documento do governo israelense no qual ele admite que o bloqueio à Gaza não tem nada a ver com questões de segurança e o tráfico de armas para o território, mas sim consiste num método de "guerra econômica" com o propósito de pressionar o Hamas e a população de Gaza. O documento foi enviado ao grupo israelense de direitos humanos Gisha, como resposta a uma ação judicial do grupo contra Israel exigindo que o governo dê mais informações sobre o bloqueio. O Gisha passou o conteúdo do documento ao jornal. No documento Israel diz que "um país tem o direito de decidir escolher não se empenhar em relações econômicas ou dar assistência econômica à outra parte do conflito, [...] e operar utilizando 'guerra econômica'".
      Desde setembro de 2007, quando do início do bloqueio, a organização israelense de direitos humanos Gisha, junto com outros organizações de Israel, pressionam o governo para que torne público os reais objetivos do bloqueio, para que divulgue exatamente quais têm sido as sanções impostas, o que é permitido entrar e sair da Faixa de Gaza, além de pressionar Israel para que suspenda o bloqueio. O grupo Gisha, na sua página na internet, tem apresentado, com dados precisos, como o estrangulamento econômico de Gaza não tem por objetivo senão punir coletivamente os 1.5 milhões de palestinos que vivem num território que cabe 61 vezes dentro de Israel - certamente, entre as razões principais,  por terem eleito um governo “inimigo” do Estado israelense.

1.Gaza em mais números
            A decisão, em 2007, do Gabinete de Segurança israelense autorizando a restrição do movimento de entrada e saída de mercadorias e pessoas na Faixa de Gaza, tem por alvo o controle sobre o direito de ir e vir dos palestinos de Gaza, o banimento de produtos essenciais (considerando alguns como “luxúria”, como o macarrão) para a sobrevivência da população e a inviabilização de qualquer atividade econômica(produção-exportação-importação). Segundo critérios do governo de Israel, vários produtos foram banidos porque não fazem parte do “mínimo” necessário para a sobrevivência, sendo rotulados de produtos de “luxúria”. Entre eles está o macarrão, por exemplo. Abaixo alguns dados sobre o bloqueio e suas consequências para a população de Gaza:

• são proibídos itens que Israel considera como de uso duplo (tanto para fins civis quanto militares): cimento, vidro, aço, papel, etc. Materiais hoje mais do que essências em Gaza, sobretudo após os bombardeios de 2008-2009, que destruiram quase toda a infraestrutura - já precária - de Gaza, como industrias e prédios governamentais. Estima-se que 20.000 palestinos de Gaza continuam desabrigados em decorrência dos ataques de 2008-2009, que, por causa da ausência de materiais de construção, estão impossibilitados de reconstruir suas casas. “A maioria dos materiais de construção não tem “uso duplo” – não há nada inerentemente perigoso sobre eles, e eles não são ‘compatíveis para uso militar’ de acordo com as linhas gerais do Ministério da Defesa. Por isso, o desejo de evitar a sua entrada está relacionado com a política total de pressão e prevenção de que haja uma ‘vida normal’”, argumenta a Gisha;

• a entrada de produtos em Gaza está limitada a aproximadamente 70 itens, entre produtos alimentícios e de outras necessidades (detergente, sabonete), medicamentos, etc. Tais mercadorias entram via coordenação com o Ministério Palestino de Economia Nacional, organizações internacionais e importadores privados;

• até segunda-feira última não era permitido a entrada em Gaza de geléia, lâmina de barbear (até onde sei uma lâmina de barbear não faz parte do arsenal de um exército nem de um grupo terrorista), etc. A permissão da entrada de alguns itens decorre da repercussão internacional do ataque à frota de ativistas que levavam ajuda humanitária à população de Gaza, que resultou na morte de 9 ativistas. Israel disse que também permitirá a entrada de alimentos complementares, como coentro e bolachas;

• Israel continua proibindo a entrada de itens puramente de finalidade civil, como tecidos, varas de pescar, embrulhos de alimentos, etc. Abaixo uma lista parcial de produtos permitidos e proibidos de entrarem em Gaza:

Proibidos
Gengibre, frutas em conserva,chocolate, geléia (acaba de ser permitida), vinagre, frutas secas, carnes frescas, cesso, sementes e castanhas, madeira, cimento, sal industrial, plástico, tetal, várias redes de peixe, tecidos, margarina industrial, cordas para pesca, papel A4, cadernos, máquinas de costura, aquecedores, cavalos, burros, jornais, brinquedos, etc.

Permitidos
Fermento, açúcar, adoçante, arroz, sal, óleo de cozinha, massas, feijão, lentilha, leite em pó, laticínios, carne, peixe e vegetais congelados, medicamentos, produtos para higiene feminino, papel higiênico, shampoo, condicionador e sabonete, pasta de dente, carne enlatada, esponja para limpar a louça, canela, latas de lixo, velas, fósforos, vassouras, camomila, etc.

• matérias primas como margarina industrial (como visto nos itens da tabela) e glicose são proibidas, claramente como um método de evitar que os residentes de Gaza produzam suas próprias bolachas e recomecem uma atividade econômica que está parada há 3 anos. Contudo, é permitido que Gaza compre bolachas produzidas em Israel;

• desde o fechamento das fronteiras de Gaza, 259 caminhões deixaram o território. Uma média de 70 caminhões por dia deixavam Gaza em 2005. Em 3 anos, Israel permitiu que Gaza exportasse menos do que era acostumado exportar em 4 dias. Para se ter uma ideia do que isso significa, uma única empresa de alimentos em Israel (Tnuava) envia uma média de 400 caminhões de sua fábrica todos os dias para vários locais no país;

• a passagem de Rafah está fechada há três anos. Uma média de 3,192 pessoas passam por essa fronteira todos os meses. Antes do bloqueio a média era de 40.000. Só no aeroporto de Tel Aviv uma média de 910.000 pessoas transitam mensalmente;

• mais de 90% da água de Gaza está poluída;

• 86.000 unidades de moradia precisam ser construídas para suprir as necessidades da população (devido sobretudo a destruição causada pelos bombardeios israelenses);

• 3.956.000 toneladas de cimento, 653.600 de ferro e 129 milhões de metros de cabos de eletricidade são necessários;

• Israel tem sempre dado respostas vagas a grupos de direitos humanos que têm exigido que o governo defina o que considera por itens “humanitários”;

•as forças armadas israelenses se recusam a tornar público documentos que, segundo o Gisha, contêm cálculos feitos pelas forças armadas sobre as necessidades calóricas da população de Gaza. O grupo está preocupado com a “aparente prática das forças armadas ao determinar um mínimo de padrão ao qual reduz o 1.5 milhões de moradores de Gaza”;

2. Punição coletiva

       Não há dúvidas de que o bloqueio ilegal da Faixa de Gaza tem por intuito inviabilizar qualquer possibilidade de uma atividade econômica mínima no território. A retórica dominante das autoridades israelenses de que o cerco é uma questão de segurança interna do Estado de Israel, não só é refutada pelas condições inumanas e a tragédia humanitária de Gaza, como também por declarações do próprio governo, como o documento enviado ao grupo de direitos humanos israelense.
       Israel fechou todas as principais linhas comerciais em Gaza (Karni, a mais importante, seguido do fechamento de Sufa e Nahal Oz), transferindo a rota de entrada e saída de produtos para uma passagem alternativa menor que as anteriores. Cairo sempre contribuiu com esse bloqueio, pois, até o acontecimento da frota humanitária, havia mantido a sua fronteira com Gaza também fechada. As importações atualmente estão em 25% do que Gaza precisa. Antes do cerco, o território recebia aproximadamente 10.400 carregamentos de caminhão ao mês, e, desde 2007, Israel tem permitido apenas a entrada de 2.500 caminhões.
        Um governo que controla até a entrada de produtos alimentícios com base no que ele postula como nutricionalmente suficiente para cada morador de Gaza, quer ter controle sobre o que há de mais elementar e fundamental para manter a vida dos palestinos: alimentação. Com isso Israel controla a vida e, consequentemente, a morte dos palestinos de Gaza. 80% dos habitantes do território precisam de ajuda humanitária para se alimentar. Se isso não é punição coletiva, o que é então?
       E enquanto essa retórica de Israel de que o cerco é uma questão de segurança de Estado receber respaldo e apoio de Washington e dos principais países europeus, Israel continuará a política de estrangulamento econômico e punição coletiva dos habitantes de Gaza e a colonização de mais territórios palestinos na Cisjordânia. Embora Obama tenha realizado pronunciamentos afirmando que a questão humanitária em Gaza está insustentável, e pedido para que Israel alivie o bloqueio, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, em entrevista concedida a Robert Frost, entrevistador da Aljazeera em inglês, manteve apoio incondicional ao bloqueio. Quando perguntado sobre o bloqueio e a morte dos 9 ativistas, Gates, em uníssono com as autoridades israelenses, respondeu: “parte do problema que Israel tem tido é que o Hamas usou doações humanitárias no passado principalmente para fortalecer a sua capacidade militar em Gaza. Materiais de construção não foram enviados para construção de casas, eles foram para bunkers. E clara que milhares de foguetes foram lançados de Gaza em Israel [...] de modo que os israelenses têm realmente um problema de segurança com Gaza e penso que essa é a razão em primeiro lugar para o bloqueio”.
        Na resposta de Gates não há sequer uma referência ao sofrimento dos palestinos de Gaza. Tampouco, é claro, aos acordos de não agressão mútua entre o Hamas e Israel (que tinham como exigência para sua permanência que o bloqueio fosse suspenso), mas que não foram cumpridos por Israel, e a colonização ininterrupta de territórios palestinos na Cisjordânia, que só aumentam o conflito e a insegurança na região. A fala do secretário apenas reproduz o discurso israelense de perigo à segurança interna, e demonstra, como já esperado, que Washington continuará dando suporte ao bloqueio ilegal de Gaza.
      Com a intensificação da crise humanitária em Gaza a partir de 2007, cada vez mais os grupos de direitos humanos e os cidadãos israelenses e também de outros países - sobretudo dos EUA -  solidários aos palestinos,  devem aumentar os protestos contra o cerco, exigindo que Israel permita a livre saída e entrada de mercadorias no território. Somente a pressão da sociedade civil organizada nesses países poderá pressionar os seus governos para que exijam, em instâncias internacionais, que Israel ponha um fim ao bloqueio e permita a livre distribuição das doações internacionais.
     Os palestinos de Gaza e de todos os territórios ocupados e tomados têm o direito fundamental de viver uma vida normal, com dignidade, o direito de empreenderem sua atividade econômica, sem a qual evidentemente nenhum povo consegue sobreviver, e de elegerem, democraticamente, seu próprio governo, sem que por isso sejam punidos.

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Fontes:

1. Website do grupo israelense de direitos humanos, Gisha:  http://www.gisha.org/index.php?intLanguage=2&intSiteSN=113&intItemId=1809 ;
2. O jornal online Mcclatchy :  http://www.mcclatchydc.com/2010/06/09/95621/israeli-document-gaza-blockade.html ;
3.www.media-ocracy.com;
4. Entrevista com o Secretário de Defesa do Governo dos Estados Unidos, Robert Gates: http://english.aljazeera.net/programmes/frostovertheworld/2010/06/201061091243602584.html  

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Bloqueio à Faixa de Gaza: cerco ilegal.

   O ataque militar israelense em mares internacionais ao comboio de ativistas de várias nacionalidades que levavam ajuda humanitária aos moradores de Gaza revela novamente a displicência do Estado de Israel em relação a tratados internacionais humanitários e a resoluções das Nações Unidas. Obviamente que uma frota cujos conteúdos eram comida, água, suprimentos médicos e materiais de construção não podem ser uma ameaça a um Estado que possui o 5º exército mais bem aparelhado do mundo. O argumento de Israel de que os soldados que invadiram os navios foram agredidos pelos ativistas e que essa foi a causa do conflito que levou à morte de 9 ativistas e à detenção de aproximadamente 660 tripulantes é expressão da ausência de argumentos em face dos fatos. A verdade é que o bloqueio ilegal de Gaza e os controles do seu espaço aéreo e marítimo, o que significa controle total do que pode e não pode entrar no território, tem sido o método do Estado de Israel para punir coletivamente os aproximadamente 1.5 milhões de palestinos que vivem na Faixa de Gaza. Desde 2005, quando Israel "desocupou" militarmente a região, Gaza está cercada por todos os lados e o governo de Israel controla tudo o que entra e sai, inclusive o direito dos seus moradores deixarem e voltarem ao território. Até mesmo o Egito, afora Israel, único país que faz fronteira com Gaza, mantinha sua fronteira fechada até o dia 31 de maio, então aberta em decorrência do ataque ao comboio de ativistas.
   Esse cerco é ilegal, sendo reprovado até pelo Conselho de Segurança da ONU, na resolução 1860, que o reconhece como um cerco que pune coletivamente os moradores de Gaza. A resolução exige o "desimpedimento das provisões e a distribuição de assistência humanitária em todo o território de Gaza, incluindo comida, combustível e tratamento médico" (http://www.zcommunications.org/rogue-state-politics-erasing-international-law-in-israel-s-attack-on-gaza-by-anthony-dimaggio ). Com a eleição do Hamas em 2007, o bloqueio tem se intensificado, tornando a vida dos moradores de Gaza ainda mais difícil.

Gaza em dados
   Para se ter uma ideia de quão insustentável tem se tornado as condições de vida no território, aqui vão alguns dados (http://english.pnn.ps/index.php?option=com_content&task=view&id=8283&Itemid=58 ):

1) em Gaza 8 em cada 10 moradores dependem de ajuda humanitária para sobreviverem;

(2) Gaza precisa, diariamente, de aproximadamente 400 caminhões para suprir as condições nutricionais básicas dos seus moradores. Contudo, Israel tem permitido a entrada de em média 170 caminhões por semana;

3) recentemente, roupas que ficaram armazenadas no porto de Ashod por um ano foram entregues mofadas À população;

4) 95% da água em Gaza é considerada pela Organização Mundial da Saúde como imprópria para consumo;

5) 48% das crianças com menos de 5 anos estão anêmicas;

6) 75 milhões de litros de esgoto não tratado são despejados no mar Mediterrâneo todos os dias por falta de sistemas de canalização apropriados e materiais de reposição.

    Durante os bombardeios de 2008-2009 - que Israel justificou como uma reação de represália ao fato de o Hamas ter "quebrado" o acordo de não agressão mútua lançando mísseis contra território israelense, quando, na verdade, foi Israel que não cumpriu o acordo uma vez que uma das condições fundamentais para sua consolidação era que Israel suspendesse o bloqueio -

7) mais de 120.000 trabalhos foram perdidos porque a já precária zona industrial de Gaza foi completamente destruída;

8) 15.000 casas e apartamentos foram afetados ou destruídos;

9) um terço das escolas foram destruídas. E o pior é que nada pode ser reconstruído, pois Israel não permite a entrada de materiais para construção.

   Diante de dados como esses, que são apenas uma parte das evidências de como as condições mínimas para uma vida de “sobrevivência precária” têm sido negadas à população de Gaza, é claro que o argumento das autoridades de Israel de que o bloqueio tem por intuito evitar que armas sejam contrabandeadas para o Hamas e, portanto, combater o terrorismo contra o Estado de Israel, não se sustenta. O estrangulamento econômico de Gaza é parte de uma política que o Estado israelense vem, sobretudo na última década, intensificando de modo a tornar cada vez mais inviável a formação de um Estado palestino na Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A intensificação da expansão das colônias judaicas na Cisjordânia, a construção, em curso, do muro de 400 quilômetros que não somente está separando palestinos de palestinos e palestinos de israelenses, mas também em vários pontos tomando mais territórios palestinos, os check points, nos quais os palestinos têm de apresentar documentação para adquirir permissão de locomoção, a prisão de ativistas palestinos como terroristas, etc., são também parte dessa política de apartheid da população palestina.
    Os integrantes do batalhão Atlacatl, do exército salvadorenho - treinado e financiado pelos Estados Unidos - que, em 13 de dezembro de 1981, cometeu um dos maiores massacres da história recente da America Latina, quando todos os moradores do vilarejo de El Mozote, que ficava em território controlado pela guerrilha, foram assassinados com métodos cruéis, repetiam um jargão que era o seguinte: “secar o rio para evitar que os peixes crescam”. Guardadas as diferenças de tempo, território e nações, o bloqueio de Israel à Gaza parece se assemelhar em mentalidade: quanto mais inviável a vida em Gaza menor as chances de luta contra o controle de Israel sobre a vida dos palestinos e por um Estado palestino.

Até onde vão as justificativas
    Um outro argumento das autoridades de Israel é que, enquanto o Hamas não reconhecer o direito à existência do Estado de Israel, as negociações a respeito da possibilidade da implantação de um Estado palestino continuarão estagnadas. Várias vezes o Hamas já propôs um cessar-fogo sob a condição de que Israel suspendesse o bloqueio, e embora Israel tenha muitas vezes efetivado o acordo, ele não o cumpriu. O reconhecimento do Estado de Israel será uma consequência do estabelecimento de negociações justas com as autoridades palestinas, incluindo o Hamas, e da implantação de um Estado palestino ao menos nos marcos de antes de 1967. Hoje é o Hamas o grupo palestino escolhido como inimigo número um pelo governo israelense, mas vale lembrar que nos anos 70 e 80 o inimigo era a OLP (Organização pela Libertação da Palestina) e seu principal lider Yasser Arafat e mais tarde o Fatah. Há evidências de que o Estado israelense apoiou financeiramente o Hamas quando do seu crescimento para fortalecê-lo como contraponto às outras organizações palestinas, de maneira a estimular a conflito entre suas lideranças e dificultar, assim, a unidade política entre os palestinos. Hoje o Hamas - que agora tem recebido ajuda financeira do Irã, para as autoridades israelenses a principal ameaça externo na região - é considerado o grande inimigo  palestino  e a Autoridade Palestina é que é apresentada como único representante do povo palestino com quem Israel se dispõe a negociar.
    Tamanho desprezo de Israel às leis internacionais e a forte oposição da comunidade internacional ao bloqueio de Gaza, e de mentiras atrás de mentiras a que as autoridades israelenses recorrem para justificar a punição coletiva aos moradores de Gaza e dos outros territórios ocupados, somente perduram, sem maiores consequências para Israel, em parte porque o seu principal aliado é os Estados Unidos, que sempre bloqueia, no Conselho de Segurança, com o apoio de vários países europeus, qualquer tentativa de impor punições a Israel. O governo estadunidense não se opõe ao bloqueio e quando, como no caso do ataque ao comboio de ativistas no dia 31 de maio, Israel sofre forte represália da comunidade internacional, o governo estadunidense apenas solicita que o próprio governo israelense investigue as razões de um suposto erro nas ações militares. Como se o que ocorreu dia 31, por exemplo, não seja o resultado de medidas deliberadas, mas de falhas no comando. Os Estados Unidos, mais do que ninguém, sabe disso, e utiliza-se dessa retórica apenas para satisfazer as exigências do teatro diplomático. Washington sempre esteve com Israel, devido a sua importância estratégica para os interesses econômicos e geopolíticos do governo norteamericano. Seria ingenuidade esperar que com a Administração Obama - apesar de alguns pronunciamentos que tenham causado a impressão de serem mais ríspidos em relação ao comportamento de Israel - a relação EUA-Israel tomaria uma nova direção.
    O bloqueio de Gaza - uma ação deliberada com o fim de intensificar o empobrecimento da população palestina na região como um meio de punição coletiva - viola vários artigos da Quarta Convenção de Genebra, que exige que os estados tomem, quando em guerra, todos os meios possíveis para protegerem não combatentes, proíbe qualquer ação que ameace vidas individuais e que civis sejam feitos reféns para propósitos políticos e militares. Mas fundamentalmente, essa punição coletiva através do cerco a Gaza fere a razão principal por trás das Convenções de Genebra e dos princípios legais nelas formulados: proibir que os estados se utilizem de punição coletiva contra civis em momentos de conflito. O agravante ainda de tudo isso, que torna mais gritante a violação de Israel à carta das Convenções de Genebra, é o fato de Israel não ser um Estado que esteja em guerra.
    Apesar de a grande mídia internacional, reproduzindo o pensamento dominante na mídia estadunidense, jamais fazer fortes críticas ao comportamento ilegal do Estado de Israel, não expondo de fato as reais condições do povo palestino, a opinião internacional tem cada vez mais não se deixado iludir pelo silêncio deliberado em face das violações sistemáticas das leis internacionais praticadas por Israel, já que suas ações, como a morte dos 9 ativistas, tem cada vez mais se sobreposto ao discurso das suas autoridades. Também as redes de informações e notícias estabelecidas entre jornalistas, ativistas, movimentos sociais, mídias independentes têm sido um mecanismo de quebra do bloqueio do discurso hegemônico sobre o que ocorre nos territórios ocupados.
     As ações de Israel têm cada vez mais contribuído para a insegurança da sua população, a instabilidade na região e a crescente oposição internacional. O ataque ao comboio humanitário em 31 de maio põe mais uma vez em evidência dois fatos inegáveis: o bloqueio à Gaza, ao não permitir a entrada de ajuda humanitária e com ela artigos de necessidade básica, está causando deliberadamente fome em massa no território; e a transformação em inimigo de Estado qualquer um que tente, de algum modo, amenizar o sofrimento da população palestina na Faixa de Gaza. Com essas medidas, o Estado israelense tende cada vez mais a ficar isolado e a ameaçar também a segurança dos seus próprios cidadãos.