sábado, 27 de fevereiro de 2010

Capitalismo e Estado pluriétnico

No centro da luta dos povos indígenas da América Latina está a busca pela autonomia dos seus territórios. Autonomia cuja concretização somente se dá mediante a consolidação de territórios com sua própria organização socioeconômica, sistema jurídico e valores culturais. É evidente que um modelo de Estado dentro do qual há de fato territórios autônomos é uma alternativa ao modelo colonial de um Estado-nação.
Um Estado Plurinacional, no contexto latinoamericano, não seria somente uma reformulação do antigo, mas uma superação deste. Porque quando se fala em plurinacionalismo se está falando de um Estado que, em função da sua diversidade econômica, social e cultural, rompe com a própria natureza do Estado burguês, no qual sobretudo uma única política econômica, quer desenvolvimentista quer neoliberal, é aplicada a toda a nação, independentemente da sua diversidade social e étnica.
Os povos milenares do nosso continente sabem muito bem que apenas liberdade em exercer e valorizar seus costumes dentro dos marcos de um Estado burguês não altera praticamente em nada a estrutura de opressão, pois não toca na questão central para a hegemonia dos povos indígenas: a autonomia econômica dos seus territórios e o controle sobre seus próprios recursos naturais. Por isso, a luta indígena é uma luta contra o modelo capitalista de apropriação dos recursos naturais, contra a lógica do capital de acumulação irrefreável. A filosofia de vida dos povos indígenas, cujos princípios fundamentais são o respeito à natureza, democracia comunitária e vigência dos seus costumes e valores, sempre foram na contramão da expansão capitalista.
Estados que aprovaram constituições pluriétnicas, como a Bolívia, estão frente a um desafio imenso, pois ao mesmo tempo em que afirmam um Estado plurieconômico, procuram também, mediante políticas desenvolvimentistas, diversificar a estrutura produtiva do país, tão dependente de exportações de produtos primários. Um modelo de produção desenvolvimentista, que impulsiona a industrialização de matérias-primas para mudar o modelo econômico, sem dúvida é muito mais comprometido com o enriquecimento do país do que um modelo de economia desregulada, pautada na privatização do setor público, exportação de matéria-prima e importação em massa, que só tem causado mais empobrecimento e desigualdades em países tão pobres como a Bolívia.
Contudo, o problema é que um Estado em processo de industrialização aumenta o uso dos seus recursos naturais, e é aí que está o desafio. Num Estado plurinacional, em função das autonomias dos territórios sobre os seus recursos naturais, políticas econômicas desenvolvimentistas vindas de cima para baixo certamente encontrariam limites institucionais. Não estou dizendo que um Estado plurfinacional e descolonizado não pode se industrializar, mas que um capitalismo desenvolvimentista também é um modelo econômico incompatível com um modelo de Estado plurinacional.
Não há receita para o modo mais adequado de se impulsionar a industrialização e a geração de melhores condições de vida para a população nos marcos de um Estado pluriétnico. O segundo mandato do governo Evo Morales na Bolívia, por exemplo, terá que enfrentar esse dilema, e a solução mais adequada somente virá de fato se houver ampla consulta popular, fortalecimento da democracia direta, participativa, respeito à autonomia econômica dos territórios indígenas, e subordinação do desenvolvimento econômico às necessidades da população. Somente assim será possível continuar, no caso da Bolívia, no caminho de refundação de um novo Estado.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Da beleza como destruição

 A História nos ensinou - embora teimamos em não aprender - que o culto irracional ao embelezamento do mundo como princípio estético a englobar todas as áreas da sociedade, resultou na matança em massa de seres humanos em fábricas da morte como uma missão biológica de higienização antropológica por meio da qual se criaria um novo homem, purificado de todas as causas manifestas e latentes de sua degenerescência. Sim, falo do culto nazista à beleza, ao sangue puro, de como o desejo de esteticização clássica do mundo levado às ultimas consequências num contexto de crise socioeconômica, como no da Alemanha do pós-guerra, foi tanto o discurso de justificação quanto a força motora de grande parte das atrocidades já realizadas por um regime contra cidadãos comuns, civis. E, como sabemos, todo um aparato de propaganda foi desenvolvido pelo regime nazista para veicular esse ideal estético-racista para as massas. Foi no nazismo que pela primeira vez beleza, no sentido artístico, foi completamente reduzida à seguinte equação: saúde mental e física igual a pureza racial. Como muito bem observou o documentarista Peter Cohen em Arquitetura da Destruição, um filme sobre o assunto, "problemas estéticos tornaram-se problemas médicos", e coube à medicina nazista a prática de todas as medidas necessárias e exigidas para a criação do Super-Homem alemão: de extermínio de deficientes físicos e mentais, e até de soldados alemães feridos em combate, a experimentos com crianças judias.

Sem dúvida, muito da estética nazista está presente em várias áreas da nossa sociedade do espetáculo, da publicidade à medicina, da organização dos ambientes de trabalho à segurança pública. Evidentemente que esses valores assumem formas mais sutis e diversificadas, vestem roupagens da época em que vivemos, à medida que se globalizam como valores, mas que não mudam em nada o seu princípio central: embelezamento e harmonia como higienização do corpo e saneamento social.

Não é por acaso que hoje a palavra "estética", para a grande maioria das pessoas perdeu sua forte associação com as artes em geral, e denota unicamente cuidados com a beleza e saúde do corpo, que não é senão uma corroboração de um pensamento de Hitler: "o maior princípio de beleza é a saúde". Penso que os meios de comunicação, sobretudo a publicidade e o cinema comercial, em função do seu alcance massificador, "democratizaram" o princípio estético nazista de beleza como higienização. Hoje, este ideal não se reduz apenas a um povo específico, mas se mundializa, está em cada propaganda de um shampoo ao prometer a beleza, prazer e a harmonia idílicas para quem o consumir, ou capacidades de Super-Homem, que beira à psicose, para quem consome determinado refrigerante, podendo com isso eliminar obstáculos e alterar a "realidade".

Da mesma maneira os programas de qualidade total e remuneração variável nas empresas, que ao obscurecer a relação de exploração entre capital e trabalho e fragmentar a consciência de classe do trabalhador, procuram convencer este a se tornar "parceiro", "sócio", "colaborador" da empresa, "membro" de um organismo maior cujo bom rendimento, e, portanto, boa saúde, depende da entrega total do trabalhador ao ideário da empresa. Hoje há psicólogos cuja assessoria dada a empresas é de detectar o tipo de psicopatologia que a empresa apresenta, e, logicamente, as causas de tal doença e as receitas para a sua cura.

Os programas de qualidade total lembram o programa do regime nazista de libertação do trabalhador pela limpeza corporal e do ambiente de trabalho, com o prognóstico louco de, como afirmou o Médico-chefe do regime, Gerhad Wagnes, "se a luta de classes morrer, ao menos o trabalho e a criatividade devem perder o estigma da sujeira. Se mostrarmos ao trabalhador como deve se lavar e o elevarmos ao nível da burguesia ele entenderá que não há porque lutar". A estética higienizante com a função de "libertar" a sociedade da luta de classes. Atualmente, é a publicidade e os manuais de integração das empresas vendendo a ilusão da inexistência da luta de classes. Vender a idéia de que se você pode consumir e faz parte de um partido-empresa você compõe "o corpo do povo" eleito, o organismo saudável, você é a massa eleita. E se você está desempregado e não pode consumir é porque a sua degenerescência (desatualização para as exigências da modernização e flexibilização do trabalho) o torna um entrave para o novo homem do mundo pós-fordista, globalizado, nanodigital. A sua ineficiência é sintoma da sua degenerescência.

Muitas são as evidências da perpetuação dos valores estéticos do nazismo em nossa sociedade, e eu poderia me estender com uma gama de exemplos , contudo não tenho fôlego nem aprofundamento de estudo para tanto. Apenas quis registrar em alguns linhas a atualidade de se pensar o legado de conteúdos ideológicos, e, portanto, um legado de mentalidade e materialidade, que a prapaganda nazista deixou para a sociedade do espetáculo. A aparente diversidade da aparente "sociedade pós-moderna" esconde uma uniformidade estética que é muito mais destrutiva do que comumente se pensa quando a preocupação incide somente sobre as perdas para a riqueza cultural humana provocadas pela massificação da cultura. A diversidade já era esperada pelo próprio Goebbels, ministro da propaganda nazista, para o qual a propaganda tinha função de apresentar "uma diversidade ostensiva que cancela a uniformidade real". Pensar o culto ao corpo perfeito no atual estágio da sociedade do espetáculo passa não somente por repensar constantemente o legado nazista na aparente heterogeneidade estética atual, mas fundamentalmente por refletir sobre  as implicações reais após o nazismo das relações entre higienização estética e limpeza étnica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma breve história da relação entre o Haiti e os Estados Unidos

A militarização estadunidense da operação humanitária no Haiti, com o envio de 16.000 soldados, um porta-aviões, navios de busca, controle sobre o único aeroporto do país e seu tráfico aéreo, priorizando os voos militares aos humanitários, revelou apenas mais um capítulo na história da política de intervenções sistemáticas dos Estados Unidos na ilha caribenha.
Quando os haitianos se libertaram da ocupação francesa em 1804, mediante uma revolução de escravos que venceu ninguém mais que Napoleão, fundando, assim, tanto a primeira república da América Latina quanto a primeira república negra das Américas, os Estados Unidos, então um país escravocrata, temendo que o exemplo dessa revolução se espalhasse em seu território e por todo o continente, não reconheceu a independência do Haiti. Reconhecimento que só veio ocorrer sessenta anos mais tarde. Junto com a França, forçou a ilha a pagar indenização de 150 mil francos ao país europeu pelos escravos que foram libertos. Sem dinheiro para essa quantia, o Haiti foi forçado a emprestar dinheiro de bancos americanos e franceses. Essa dívida somente foi quitada em 1947, e estimasse que no total tenha sido o equivalente a 20 bilhões de dólares!
Em 1915, os Estados Unidos, sob o governo de Woodrow Wilson, por causa da recusa do governo haitiano em mudar uma lei na constituição que proibia que estrangeiros comprassem terras na ilha, invadiu o país, matando em um único conflito contra as forças de resistência aproximadamente 2.000 pessoas. Os Estados Unidos ocupou o país, inclusive coletando impostos da população e assumindo o controle das instituições governamentais, até 1934.
Um dos mais cruéis regimes ditatoriais na América Latina, a ditadura de "Papa Doc" e "Baby Doc" Duvalier, que durou de 1957 a 1986, foi apoiada economicamente e militarmente pelo governo estadunidense, período no qual o Haiti passou de produtor de arroz (hoje já não produz nada desse grão) e de o grande produtor caribenho de açúcar, a importar grande quantidade de arroz e açúcar estadunidenses subsidiados. Estima-se que 40% de 1.5 bilhão de dólares da atual dívida externa haitiana foi contraída durante o regime dos Duvalier.
No curso da década de 1980, "Baby Doc" e a sempre pequena elite haitiana não conseguiram mais reprimir a massiva mobilização popular contra a exploração e a violência do regime. Após 3 décadas sem eleições, em 1990 a população elegeu como presidente, com aproximadamente 80% dos votos, o teólogo Jean-Bertrand Aristide. Com uma plataforma prometendo uma maior participação popular no sistema político, aumento do salário mínimo, investimento em educação, aumento do imposto sobre importação, e fim das privatizações, Aristide nem teve tempo de levar acabo qualquer política, pois em 1991 foi deposto por outro golpe de Estado. Contudo, em 1994 Aristide, sob permissão dos Estados Unidos, retornou ao poder, sob a exigência estadunidense de não tentar barrar as políticas neoliberais de ajustes e austeridade ficais, continuar com a taxação baixa sobre as commodities norteamericanas, etc., trocando em miúdos, não colocar em risco a estabilidade dos investimentos estrangeiros.
Mesmo com todos esses adendos, Aristide, logo que reassumiu o cargo surpreendentemente aboliu o exército que o havia deposto. Um ato e realização de grande impacto, considerando um pais que em quase toda sua história ou esteve sob ocupação estrangeira ou sob regimes despóticos.
Em 2000, Aristide, apesar de não conseguir realizar modificações socioeconômicas consideráveis, foi reeleito, com seu partido ocupando 90% das cadeiras no parlamento.
Embora não sendo, a princípio, a ameaça que aparentava ser em função de suas propostas anti-neoliberais quando eleito em 1990, aos olhos da pequena elite haitiana, sempre disposta a defender seus investimentos e propriedades, Aristide permanecia uma ameça ao que essa elite considera como estabilidade e segurança: um regime, a despeito de sua crueldade com a maioria da população empobrecida, que assegure o bom andamento dos negócios dessa elite e, portanto, o seu enriquecimento. Segurança e estabilidade, que nos termos dessa elite são somente conquistáveis através de um exército equipado e pronto para controlar e reprimir qualquer mobilização popular.
Em 2002, os Estados Unidos cortou qualquer empréstimo financeiro ao Haiti. E em 29 de fevereiro de 2004, sob a justificativa de que o governo de Aristide por causa da sua instabilidade já não poderia conter os insurgentes, exigiu que ele renunciasse ao cargo. Aristide se recusou a renunciar. Como resposta, o governo norteamericano bloqueou o envio de mais funcionários de uma empresa estadunidense privada que fazia a segurança pessoal do presidente haitiano e se recusou a proteger o governo constitucional de Aristide quando as forças insurgentes chegassem à capital de Porto-Príncipe. Em verdade, as forças insurgentes não estavam às portas da capital, como fez crer o governo estadunidense, e sim distantes no nordeste do país. Convencido de que um comboio das forças armadas dos Estados Unidos o escoltaria a um local onde faria um pronunciamento televisionado para a população, Aristide aceitou sair de sua casa. Contudo, ele e sua esposa foram levados para o aeroporto da cidade e obrigados a embarcar em um avião que os levou para a República Central da África. Desde então, Aristide está proibido de retornar ao país, pelos Estados Unidos, o governo transitório e clientelista de Préval e pela MINUSHTAH (sigla em inglês para Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti), liderada pelo governo brasileiro, que atualmente juntos controlam o país.
O espólio e empobrecimento do país, e a inexistência do mínimo necessário para o fomento de um Estado funcional no Haiti - agravado pelo terremoto de 12 de janeiro - não podem ser compreendidos sem se destacar o papel histórico das elites do país e da política estadunidense em relação à ilha. Corporações dos Estados Unidos, por anos têm se juntado com a elite haitiana para dirigir, por exemplo, maquiladoras que fazem camisetas para marcas americanas, com mão-de-obra a menos de 2 dólares por dia e sob péssimas condições de trabalho.
As migrações em massa de camponeses para Porto-Príncipe, resultado da política agrícola de importação de alimentos subsidiados produzidos nos Estados Unidos, levou a uma explosão nas últimas décadas da concentração de pessoas vivendo em locais precários na capital, sem dúvida vulneráveis a catástrofes naturais, como o terremoto de duas semanas atrás. Uma população que não tem outra alternativa senão viver amontoada, favelizada em locais de risco.
E o agravante, como a jornalista canadense Naomi Klein mostra em seu livro, The Shock Doctrine: The rise of disaster capitalism, é que "enquanto as pessoas estavam cambaleando dos desastres naturais, guerras e agitações econômicas, políticos entendidos e lideres industriais perversamente implementaram políticas que nunca teriam passado durante tempos menos confusos". A situação atual do Haiti de completa devastação, total destruição da sua infra-estrutura já está sendo uma oportunidade para, sob o pretexto de reconstrução do país, corporações se aproveitarem para conseguirem grandes lucros. O que podemos esperar com Clinton e Bush encarregados de juntar fundos para o Haiti?
O povo haitiano tem resistido desde a sua independência, mas em face das dimensões do desastre atual, que é em parte natural e em parte social, que fez  do Haiti não somente o país mais pobre das Américas, mas do mundo, e diante do atraso e lentidão da ajuda humanitária, somente estando lá para ao menos poder dizer algo sobre quão longe pode ir a resistência de um povo.