terça-feira, 15 de junho de 2010

Mais sobre a punição coletiva aos habitantes de Gaza.

        O jornal McClaTchy expôs recentemente o conteúdo de um documento do governo israelense no qual ele admite que o bloqueio à Gaza não tem nada a ver com questões de segurança e o tráfico de armas para o território, mas sim consiste num método de "guerra econômica" com o propósito de pressionar o Hamas e a população de Gaza. O documento foi enviado ao grupo israelense de direitos humanos Gisha, como resposta a uma ação judicial do grupo contra Israel exigindo que o governo dê mais informações sobre o bloqueio. O Gisha passou o conteúdo do documento ao jornal. No documento Israel diz que "um país tem o direito de decidir escolher não se empenhar em relações econômicas ou dar assistência econômica à outra parte do conflito, [...] e operar utilizando 'guerra econômica'".
      Desde setembro de 2007, quando do início do bloqueio, a organização israelense de direitos humanos Gisha, junto com outros organizações de Israel, pressionam o governo para que torne público os reais objetivos do bloqueio, para que divulgue exatamente quais têm sido as sanções impostas, o que é permitido entrar e sair da Faixa de Gaza, além de pressionar Israel para que suspenda o bloqueio. O grupo Gisha, na sua página na internet, tem apresentado, com dados precisos, como o estrangulamento econômico de Gaza não tem por objetivo senão punir coletivamente os 1.5 milhões de palestinos que vivem num território que cabe 61 vezes dentro de Israel - certamente, entre as razões principais,  por terem eleito um governo “inimigo” do Estado israelense.

1.Gaza em mais números
            A decisão, em 2007, do Gabinete de Segurança israelense autorizando a restrição do movimento de entrada e saída de mercadorias e pessoas na Faixa de Gaza, tem por alvo o controle sobre o direito de ir e vir dos palestinos de Gaza, o banimento de produtos essenciais (considerando alguns como “luxúria”, como o macarrão) para a sobrevivência da população e a inviabilização de qualquer atividade econômica(produção-exportação-importação). Segundo critérios do governo de Israel, vários produtos foram banidos porque não fazem parte do “mínimo” necessário para a sobrevivência, sendo rotulados de produtos de “luxúria”. Entre eles está o macarrão, por exemplo. Abaixo alguns dados sobre o bloqueio e suas consequências para a população de Gaza:

• são proibídos itens que Israel considera como de uso duplo (tanto para fins civis quanto militares): cimento, vidro, aço, papel, etc. Materiais hoje mais do que essências em Gaza, sobretudo após os bombardeios de 2008-2009, que destruiram quase toda a infraestrutura - já precária - de Gaza, como industrias e prédios governamentais. Estima-se que 20.000 palestinos de Gaza continuam desabrigados em decorrência dos ataques de 2008-2009, que, por causa da ausência de materiais de construção, estão impossibilitados de reconstruir suas casas. “A maioria dos materiais de construção não tem “uso duplo” – não há nada inerentemente perigoso sobre eles, e eles não são ‘compatíveis para uso militar’ de acordo com as linhas gerais do Ministério da Defesa. Por isso, o desejo de evitar a sua entrada está relacionado com a política total de pressão e prevenção de que haja uma ‘vida normal’”, argumenta a Gisha;

• a entrada de produtos em Gaza está limitada a aproximadamente 70 itens, entre produtos alimentícios e de outras necessidades (detergente, sabonete), medicamentos, etc. Tais mercadorias entram via coordenação com o Ministério Palestino de Economia Nacional, organizações internacionais e importadores privados;

• até segunda-feira última não era permitido a entrada em Gaza de geléia, lâmina de barbear (até onde sei uma lâmina de barbear não faz parte do arsenal de um exército nem de um grupo terrorista), etc. A permissão da entrada de alguns itens decorre da repercussão internacional do ataque à frota de ativistas que levavam ajuda humanitária à população de Gaza, que resultou na morte de 9 ativistas. Israel disse que também permitirá a entrada de alimentos complementares, como coentro e bolachas;

• Israel continua proibindo a entrada de itens puramente de finalidade civil, como tecidos, varas de pescar, embrulhos de alimentos, etc. Abaixo uma lista parcial de produtos permitidos e proibidos de entrarem em Gaza:

Proibidos
Gengibre, frutas em conserva,chocolate, geléia (acaba de ser permitida), vinagre, frutas secas, carnes frescas, cesso, sementes e castanhas, madeira, cimento, sal industrial, plástico, tetal, várias redes de peixe, tecidos, margarina industrial, cordas para pesca, papel A4, cadernos, máquinas de costura, aquecedores, cavalos, burros, jornais, brinquedos, etc.

Permitidos
Fermento, açúcar, adoçante, arroz, sal, óleo de cozinha, massas, feijão, lentilha, leite em pó, laticínios, carne, peixe e vegetais congelados, medicamentos, produtos para higiene feminino, papel higiênico, shampoo, condicionador e sabonete, pasta de dente, carne enlatada, esponja para limpar a louça, canela, latas de lixo, velas, fósforos, vassouras, camomila, etc.

• matérias primas como margarina industrial (como visto nos itens da tabela) e glicose são proibidas, claramente como um método de evitar que os residentes de Gaza produzam suas próprias bolachas e recomecem uma atividade econômica que está parada há 3 anos. Contudo, é permitido que Gaza compre bolachas produzidas em Israel;

• desde o fechamento das fronteiras de Gaza, 259 caminhões deixaram o território. Uma média de 70 caminhões por dia deixavam Gaza em 2005. Em 3 anos, Israel permitiu que Gaza exportasse menos do que era acostumado exportar em 4 dias. Para se ter uma ideia do que isso significa, uma única empresa de alimentos em Israel (Tnuava) envia uma média de 400 caminhões de sua fábrica todos os dias para vários locais no país;

• a passagem de Rafah está fechada há três anos. Uma média de 3,192 pessoas passam por essa fronteira todos os meses. Antes do bloqueio a média era de 40.000. Só no aeroporto de Tel Aviv uma média de 910.000 pessoas transitam mensalmente;

• mais de 90% da água de Gaza está poluída;

• 86.000 unidades de moradia precisam ser construídas para suprir as necessidades da população (devido sobretudo a destruição causada pelos bombardeios israelenses);

• 3.956.000 toneladas de cimento, 653.600 de ferro e 129 milhões de metros de cabos de eletricidade são necessários;

• Israel tem sempre dado respostas vagas a grupos de direitos humanos que têm exigido que o governo defina o que considera por itens “humanitários”;

•as forças armadas israelenses se recusam a tornar público documentos que, segundo o Gisha, contêm cálculos feitos pelas forças armadas sobre as necessidades calóricas da população de Gaza. O grupo está preocupado com a “aparente prática das forças armadas ao determinar um mínimo de padrão ao qual reduz o 1.5 milhões de moradores de Gaza”;

2. Punição coletiva

       Não há dúvidas de que o bloqueio ilegal da Faixa de Gaza tem por intuito inviabilizar qualquer possibilidade de uma atividade econômica mínima no território. A retórica dominante das autoridades israelenses de que o cerco é uma questão de segurança interna do Estado de Israel, não só é refutada pelas condições inumanas e a tragédia humanitária de Gaza, como também por declarações do próprio governo, como o documento enviado ao grupo de direitos humanos israelense.
       Israel fechou todas as principais linhas comerciais em Gaza (Karni, a mais importante, seguido do fechamento de Sufa e Nahal Oz), transferindo a rota de entrada e saída de produtos para uma passagem alternativa menor que as anteriores. Cairo sempre contribuiu com esse bloqueio, pois, até o acontecimento da frota humanitária, havia mantido a sua fronteira com Gaza também fechada. As importações atualmente estão em 25% do que Gaza precisa. Antes do cerco, o território recebia aproximadamente 10.400 carregamentos de caminhão ao mês, e, desde 2007, Israel tem permitido apenas a entrada de 2.500 caminhões.
        Um governo que controla até a entrada de produtos alimentícios com base no que ele postula como nutricionalmente suficiente para cada morador de Gaza, quer ter controle sobre o que há de mais elementar e fundamental para manter a vida dos palestinos: alimentação. Com isso Israel controla a vida e, consequentemente, a morte dos palestinos de Gaza. 80% dos habitantes do território precisam de ajuda humanitária para se alimentar. Se isso não é punição coletiva, o que é então?
       E enquanto essa retórica de Israel de que o cerco é uma questão de segurança de Estado receber respaldo e apoio de Washington e dos principais países europeus, Israel continuará a política de estrangulamento econômico e punição coletiva dos habitantes de Gaza e a colonização de mais territórios palestinos na Cisjordânia. Embora Obama tenha realizado pronunciamentos afirmando que a questão humanitária em Gaza está insustentável, e pedido para que Israel alivie o bloqueio, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, em entrevista concedida a Robert Frost, entrevistador da Aljazeera em inglês, manteve apoio incondicional ao bloqueio. Quando perguntado sobre o bloqueio e a morte dos 9 ativistas, Gates, em uníssono com as autoridades israelenses, respondeu: “parte do problema que Israel tem tido é que o Hamas usou doações humanitárias no passado principalmente para fortalecer a sua capacidade militar em Gaza. Materiais de construção não foram enviados para construção de casas, eles foram para bunkers. E clara que milhares de foguetes foram lançados de Gaza em Israel [...] de modo que os israelenses têm realmente um problema de segurança com Gaza e penso que essa é a razão em primeiro lugar para o bloqueio”.
        Na resposta de Gates não há sequer uma referência ao sofrimento dos palestinos de Gaza. Tampouco, é claro, aos acordos de não agressão mútua entre o Hamas e Israel (que tinham como exigência para sua permanência que o bloqueio fosse suspenso), mas que não foram cumpridos por Israel, e a colonização ininterrupta de territórios palestinos na Cisjordânia, que só aumentam o conflito e a insegurança na região. A fala do secretário apenas reproduz o discurso israelense de perigo à segurança interna, e demonstra, como já esperado, que Washington continuará dando suporte ao bloqueio ilegal de Gaza.
      Com a intensificação da crise humanitária em Gaza a partir de 2007, cada vez mais os grupos de direitos humanos e os cidadãos israelenses e também de outros países - sobretudo dos EUA -  solidários aos palestinos,  devem aumentar os protestos contra o cerco, exigindo que Israel permita a livre saída e entrada de mercadorias no território. Somente a pressão da sociedade civil organizada nesses países poderá pressionar os seus governos para que exijam, em instâncias internacionais, que Israel ponha um fim ao bloqueio e permita a livre distribuição das doações internacionais.
     Os palestinos de Gaza e de todos os territórios ocupados e tomados têm o direito fundamental de viver uma vida normal, com dignidade, o direito de empreenderem sua atividade econômica, sem a qual evidentemente nenhum povo consegue sobreviver, e de elegerem, democraticamente, seu próprio governo, sem que por isso sejam punidos.

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Fontes:

1. Website do grupo israelense de direitos humanos, Gisha:  http://www.gisha.org/index.php?intLanguage=2&intSiteSN=113&intItemId=1809 ;
2. O jornal online Mcclatchy :  http://www.mcclatchydc.com/2010/06/09/95621/israeli-document-gaza-blockade.html ;
3.www.media-ocracy.com;
4. Entrevista com o Secretário de Defesa do Governo dos Estados Unidos, Robert Gates: http://english.aljazeera.net/programmes/frostovertheworld/2010/06/201061091243602584.html  

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