A retirada das "tropas de combate" estadunidenses do Iraque, depois de 7 anos de uma invasão falaciosamente justificada pela administração Bush e que, em vez de democracia, levou para o povo iraquiano mais morte, estagnação econômica, sectarismo, conflito interno, etc., apesar ser vendida como o penúltimo passo para a retirada completa dos Estados Unidos do Iraque, a ser concluída em 2011, não condiz definitivamente com o que na realidade está ocorrendo. O contingente de 50.000 soldados "não-combatentes" que ainda permanece no Iraque, que segundo autoridades estadunidenses e iraquianas terá a função de "assessorar e assistir" as forças de segurança do país até o final do próximo ano, não é o que resta da presença norte-americana. O retorno das tropas abre passagem para a entrada de mais soldados de agências privadas de segurança e funcionários do Departamento de Estado, que permanecerão no país muito depois da retirada do último soldado das forças de coalizão, caso esta retirado de fato se conclua.
A conclusão, em 31 de agosto último, da retirada de 90.000 soldados - segunda etapa do acordo selado em 2008, no fim do governo de W. Bush - sinaliza o começo do novo papel que os EUA irão desempenhar no Iraque. De agora em diante é o Departamento de Estado, e não mais o Pentágono, que irá assumir as responsabilidades da presença norte-americana no país. E o departamento já iniciou negociações para a contratação em breve de mais 7.000 soldados privados, além de equipamentos como transportes blindados, helicópteros e aviões, etc., para "assessorar" o treinamento da polícia iraquiana. As guerras do Iraque e Afeganistão são as guerras da história contemporânea nas quais há a maior participação de empresas e contingentes privados de segurança. Em ambas tem havido casos recorrentes de abusos praticados (o assassinato de civis, por exemplo) por soldados funcionários dessas empresas, que em muitos casos são ex-soldados do exército norte-americanos, cujo novo trabalho, aliás mais lucrativo, é de serem mercenários.
Tudo indica que a nova etapa da ocupação estadunidense do Iraque seja quase uma completa passagem de operações de segurança, inteligência e combate das mãos do Estado para o setor privado. Em poucas palavras, uma privatização da invasão. E muitos são os benefícios, para os Estados Unidos, dessa transição.
O país ainda não se recuperou da pior crise econômica que tem enfrentado desde 1929, ainda sem previsão para ser completamente superada, e com um índice de desemprego de 10%. Na política externa, Obama aumentou a presença estadunidense no Afeganistão, estendendo a guerra para o Paquistão, aliás uma guerra sem previsões de vitória. Portanto, privatizar a invasão do Iraque significa diminuir os custos com uma guerra que já consumiu 700 bilhões de dólares do contribuinte norte-americano.
Os EUA já conseguiram, senão completamente, ao menos em grande parte, consolidar os objetivos em função dos quais empreendeu a invasão: controle sobre o petróleo do país, expansão do poder estadunidense na região e estabelecimento de mais bases militares no Oriente Médio. Agora há, só no Iraque, 100 bases estadunidenses e dos países da coalizão. O objetivo de repartir o petróleo iraquiano entre as corporações norte-americanas já foi concluído logo nos primeiros anos da invasão. A presença militar estadunidense no Oriente Médio jamais foi tão grande quanto agora e as bases no Iraque e países vizinhos nunca tão numerosas e ativas. De maneira que os objetivos estratégicos e econômicos norte-americanos foram alcançados.
A passagem da responsabilidade pela segurança do país ao setor privado, primeiro, como já dito, diminui os custos do Estado e, em segundo lugar, diminui a pressão da sociedade americana sobre o governo em relação à guerra, dado que, uma vez privatizado o serviço de segurança, o governo estadunidense não precisa mais prestar tantas contas aos seus cidadãos sobre os rumos do Iraque. No que se refere ao Estado iraquiano, as empresas privadas contratadas não são submetidas a suas leis, uma vez que são contratadas pelo Departamento de Estado norte-americano. E como muitos dos donos dessas empresas são militares aposentados do alto escalão das forças armadas, alguns deles inclusive ligados à indústria bélica, o Estado e as corporações se confundem, e, sobre o sofrimento da população iraquiana, os lucros são repartidos.
As condições sociais, políticas e econômicas do Iraque após 7 anos evidenciam o que muitos sabiam com base no que se pode esperar quando os Estados Unidos invadem um país prometendo democracia e liberdade. Afora o fato de o Iraque já estar há seis meses sem um governo, em função das eleições inconclusas para o Parlamento realizadas em março último, e de os integrantes do governo anterior, instalado pelos Estados Unidos, sofrerem ampla rejeição popular, o que mais causa sofrimento ao povo iraquiano é a ausência de infraestrutura básica e de políticas públicas mínimas.
Após anos de embargo econômico e invasão, segundo dados das Nações Unidas, 80% da água iraquiana não é tratada e somente um quarto das casas estão ligadas a uma rede de esgoto pública. Num país em que 50% da população é menor de 19 anos, somente na capital, Bagdá, o índice de desemprego entre o jovens está em 30%. O Iraque possui a segunda maior taxa de mortalidade infantil entre os países da região, e mais de 300.000 iraquianos jovens nunca foram para escola. Estima-se que um quarto dos iraquianos vive em completa pobreza. Energia só é disponível algumas horas do dia e, embora seus poços jorrem petróleo, a escassez de combustível é frequente. Sabe-se muito bem para onde eles vão.
O atual governo iraquiano depende dos Estados Unidos para a sua sobrevivência, e não é de se estranhar que funcionários do alto escalão e militares iraquianos temem a retirada das tropas estadunidenses e sustentem que as forças do país somente estarão prontas para atuar por conta própria em 2020. A população e os grupos insurgentes jamais aceitarão um regime submetido aos ditames de Washington, e cujos membros estão muito mais preocupados em se manter no poder e se beneficiar financeiramente da parceria com o invasor do que melhorar as condições de vida da população. As lideranças governamentais temem que a saída do EUA resulte no seu fim. Por isso veem com bons olhos o serviço prestado por soldados mercenários, um dos quais será o de proteger os membros do Parlamento.
Segundo dados oficiais do governo norte-americano e de organizações internacionais, em 7 anos foram mortos por consequência direta da guerra 100.000 iraquianos e 4.4000 soldados estadunidenses. Estima-se que aproximadamente 4.000.000 de iraquianos foram deslocados e 2.000.000 tenham deixado o país. Contudo, os números são muito maiores. A presença estadunidense no Iraque remonta a 1991, guerra empreendida por Bush pai, e desde então os Estados Unidos jamais deixaram de bombardear o país e conseguir que o Conselho de Segurança da ONU aprove sanções atrás de sanções. Como decorrência de 20 anos de invasões, guerras e sanções o número de iraquianos mortos ultrapassa de longe 1.000.000.
Sabemos que os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque jamais serão julgados, muito menos os seus principais arquitetos, Bush pai e Bush filho. Embora números sejam importantes para que a opinião pública tome certa dimensão dos horrores pelos quais gerações de iraquianos têm passado com a ocupação estadunidense, eles estão muito longe de fazer um pouco de justiça que seja ao sofrimento do povo iraquiano. A morte pode ser contabilizada, mas não existem dados e cálculos que meçam o medo, o desamparo e a falta de esperança que tomam conta de um povo submetido a um sofrimento forçado e sem perspectiva de término.
Os Estados Unidos não só deixam a responsabilidade da "segurança" do país para terceiros, mas também deixam que as funções humanitárias fiquem a cargo de órgãos das Nações Unidas e ONGs. "Terminada" a guerra, já aumentam os “porta-vozes internacionais” dos direitos humanos prometendo realizar um trabalho conjunto com o governo local e a sociedade com o objetivo de erradicar a pobreza, a fome, a mortalidade infantil, etc. Este filme já vimos várias vezes: privatização, assessorada pelas Nações Unidas, da "ajuda humanitária". O que significa que muita gente ainda vai lucrar com a filantropia no Iraque.
O envolvimento dos Estados Unidos no Iraque está muito longe de ter um fim. O general Ali Ghaidan, comandante em solo das forças iraquianas afirmou em entrevista que se precisarem de ajuda para manter "a segurança" a receberão dos Estados Unidos. E manter "a segurança" aqui significa, de forma velada, o que o presidente Barack Obama disse abertamente em pronunciamento para a nação estadunidense quando da retirada das tropas: "há ainda muito trabalho por fazer para garantir que o Iraque seja um efetivo parceiro nosso." Portanto, se os interesses de Washington forem ameaçados, tropas estadunidenses estarão prontas para atender os seus parceiros.
Os rumos internos da vida político-social do Iraque a partir do próximo ano irão dizer o quanto de força os Estados Unidos estarão dispostos a empregar para manter a estabilidade, na região, dos seus interesses e dos negócios das suas corporações.
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