quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Transformação social no Egito: entre o imperialismo e a tirania.

       As milhares de pessoas nas ruas das principais cidades do Egito marchando em mobilizações e protestos, não se juntam apenas para exigir a renúncia do ditador Hosni Mubarak, no poder desde 1981, e a convocação de eleições. Os protestantes, que no dia 1 de fevereiro somavam mais de 1 milhão de pessoas somente na capital do país, Cairo, demandam mudanças estruturais na sociedade egípcia, que há décadas vive sob governos ditatoriais corruptos que têm sequestrado, torturada, intimidado e assassinado opositores para se manterem no poder.
       O mar de manifestantes que acorrem às ruas principalmente nos últimos dias, talvez seja a maior na região desde a Revolução Islâmica de 1979 no Irã, que levou aproximadamente 10 milhões de pessoas às ruas, e que derrubou uma ditadura instalada pelos Estados Unidos e Inglaterra em 1953. Mesmo as manifestações iranianas no ano passado contra o resultado das eleições, possivelmente fraudadas, que reelegeram Ahmadinejad, não se comparam nem em número nem em recorrência com o que está ocorrendo no Egito. Os protestantes são formados por vários setores da sociedade egípcia: favelados urbanos, camponeses e pequenos agricultores, trabalhadores empregados e desempregados, pessoas de classe média, estudantes, etc. As principais demandas são por questões internas. Além de exigirem a renúncia do ditador, são por mudanças econômicas (fim da corrupção, por emprego, educação, saúde, etc) e por respeito aos direitos humanos (liberação dos presos políticos, direito de protestar, etc). Mas o mais importante no que está ocorrendo é que a população tem demandado essas mudanças imediatas e prementes - num país em que a população está cansada de 30 anos de exclusão, empobrecimento e alheamento completamente da participação nas questões nacionais - como parte de um anseio maior de mudar as estruturas de governo do país. Ou seja, não são meramente mobilizações pró-reformas, mas sim um movimento de massa que demanda mais do que eleições. Os egípcios querem uma verdadeira democracia, i.e, com liberdade de expressão e participação popular. Revoltas populares, não na mesma dimensão, mas com objetivos e demandas semelhantes, têm ocorrido recentemente em outros países no Oriente Médio e Note da África, como Tunísia, Yemen, Jordânia, etc. As oligarquias e pseudo-democracias na região, a sua maioria aliadas dos Estados Unidos e subservientes aos seus interesses estratégicos, estão ao menos sendo desafiadas por esses processos de revolta popular.
          No Egito, epicentro de um movimento de massa, os protestos, que, no começo estavam  transcorrendo relativamente de forma pacífica, começaram aficar mais violentos,  sobretudo a partir dos acontecimentos de quarta-feira, em que defensores do ditador, entre eles policiais, entraram em confronto com os manifestantes no Cairo, ocasionando 13 mortes.  Também há relatos de manifestantes de que em cidades como Alexandria e Suez, policiais tem acadado as manifestações. Em contrapartida, desde 25 de janeiro, quando do início das manifestações em massa, as Forças Armadas tem se recusado a enfrentar a população.
Juventude nos protestos
        Destaque deve ser dado à participação da juventude egípcia nesse movimento de massa. Participação que tem sido central. Inconformados com a falta de trabalho, oportunidades, liberdade e esperanças, os jovens formam grande parte dos dissidentes. Fato nada novo nos países árabes, onde a presença ativa e o papel de destaque da juventude nos processos de transformação social é muito comum. O que é singular no caso do Egito é o papel importante que, nos últimos anos, as comunidades de jovens ativistas blogeiros estão desempenhando no movimento de oposição. A repressão do governo está levando os jovens ao ativismo. E as redes sociais têm sido uma ferramenta não somente para expressar o descontentamento, mas um meio tanto de cobrir e noticiar os protestos quanto de conectar as pessoas no país convocando-as para atuar em solidariedade. Num país onde a censura nas mídias tradicionais é tão eficaz, a atuação descentralizada dos blogeiros vem conseguindo burlar as restrições sobre a liberdade de expressão. Eles estão usando as redes sociais para se expressar já que os espaços para contestação na mídia tradicional são quase nulos. Muitos blogeiros, entretanto, que não escondem sua identidade ou cuja identidade foi descoberta pelo governo, têm sido presos.
        Mas a repressão e brutalidade do governo com esses jovens escritores e documentaristas não é somente por causa do conteúdo do que escrevem e noticiam. O que incomoda o regime é que esses jovens se articulam via redes sociais para atuar nas ruas, articular manifestações e ir para a ação direta junto com o restante da população. Como observou um ativista e blogeiro preso pelo regime: "quebramos com a idéia de se escrever e não fazer nada. Não é somente palavra, é palavra e ação. E é isso que preocupa muito". Os blogeiros, como parte importante desse movimento de massa, além de facilitarem a conexão entre as pessoas na região, estão conectando as pessoas de outros países com as mobilizações que vêm ocorrendo. Ao noticiarem e opinarem sobre os fatos - quer estando nas ruas ou presos – e continuarem com a campanha pela liberação dos que ainda estão presos, os ativistas mantêm a comunidade internacional informada sobre os acontecimentos, contribuindo, com isso, para criar uma rede internacional de solidariedade à revolta popular e de repúdio à brutalidade do regime.

Egito e seus principais aliados
         Apesar de o movimento de massas no Egito ter por principais demandas questões internas, e não vermos imagens clássicas de protestos com queimas de bandeiras estadunidenses, não há dúvida de que a grande maioria dos egípcios que têm tomado as ruas do Cairo, Alexandria, Suez, etc., estão descontentes com a política externa do Estado egípcio de subserviência aos interesses imperiais de Washington. Certamente que se houvesse no Egito ainda que uma tênue responsabilidade democrática do Estado, a colaboração quase incondicional entre os dois Estados não seria possível.
        O começo do clientelismo dos governos egípcios tem data. Durante grande parte da Guerra Fria, o Egito era um país não alinhado com Washington, e com forte cultura de governos laicos. Temendo a aproximação do Egito com a União Soviética, em 1956, a Inglaterra e França, com apoio estadunidense, e a lançaram uma campanha militar - frustrada - com o objetivo de reassumir o controle do Canal de Suez, que tinha sido nacionalizado pelo governo de Gamal Abdel Nasser,principal líder político do pan-arabismo e opositor dos interesses dos Estados Unidos e de Israel. Contudo, somente na década de 1970, com a morte de Nasser, por um lado, e o enfraquecimento, por outro lado, do nacionalismo no país em parte por decorrência da derrota de Egito para Israel na guerra dos 6 dias em 1967,os Estados Unidos conseguiram atrair o maior país árabe para a sua órbita de influência.
         Desde então o país está alinhado com Washington e em colaboração com a ocupação israelense dos territórios palestinos. Principalmente da Faixa de Gaza, que faz fronteira com o Egito por meio da passagem de Farah, cujo bloqueio por parte do governo egípcio impede o fluxo livre de pessoas e comidas, condenando, junto com Israel, a população de Gaza - 1.5 milhões de pessoas - a um aprisionamento que já dura 5 anos. Desde 1979 - por causa do "tratado de paz" de Camp Davis, estabelecido entre Egito, Estados Unidos e Israel, primeiro tratado assinado entre um Estado árabe e Israel - o Egito passa a ser chave central para a doutrina de segurança israelense, uma vez que se posiciona como seu principal colaborador na região. Nessas últimas 3 décadas, e claro que não por coincidência, os Estados Unidos fornecem ao país, anualmente, 1.5 bilhões de dólares em ajuda militar.
       Mas afora a colaboração com Israel, o clientelismo do governo egípcio, como observa Phyllis Bennis, vem sendo central “para assegurar que o resto do mundo árabe [até a última década do século XX] permanecesse um bastião pró-USA". Em 1991, por exemplo, o Egito foi fundamental para que a Casa Branca conseguisse formar uma coalizão de países árabes para se juntar na guerra com Saddam, apesar da completa oposição da população egípcia. Para assegurar o comprometimento do ditador Mubarak, Washington perdoou 50% do débito que o país possuía com os EUA. E após a guerra ao “terror” lançada por Bush filho e os neoconservadores após 11 de setembro, o Egito permite que prisioneiros do governo norteamericano sejam interrogados em seu solo.
        As incertezas sobre o impacto que os acontecimentos no Egito terão sobre a "amigável "relação entre o país e Israel caso o regime de Mubarak caia - o que é quase inevitável - já preocupam o Estado israelense. Um ex-embaixador de Israel no Egito saiu em defesa aberta da ditadura de Mubarak, sustentando, sem o mínimo de escrúpulo, que "as únicas pessoas no Egito comprometidas com a paz são as pessoas no círculo de Mubarak, e se o próximo presidente não for um deles, nós [Israel] teremos problemas". A vice-primeira ministra Silvan Shalom foi ainda mais incisiva, e disse que "se regimes que fazem fronteira com Israel fossem substituídos por sistemas democráticos, a segurança nacional de Israel poderia ser significativamente ameaçada".
        Quanto aos pronunciamentos "pró-manifestantes" das principais autoridades estadunidenses, não nos iludamos, pois é próprio da política imperial dos Estados Unidos brincar com palavras duplas. Embora o presidente Barak Obama tenha manifestado aparente apoio ao estabelecimento de "um governo que responda às aspirações do povo egípcio", e a Secretária de Estado "pedido" por "uma mudança que responderá aos descontentamentos do povo egípcio", o fato é que o governo de Mubarak tem sido, como discorri, peça central da estratégia estadunidense para a região. Nos 30 anos de governo do ditador, foi com armas "made in USA" que Barak matou protestantes e dissidentes, e preservou a “estabilidade” interna, palavra tão cara aos presidentes norteamericanos.
        Pode ser que, em parte, a retórica de apoio aos protestos seja fruto da constatação do governo dos Estados Unidos de que as oligarquias e pseudo-democracias fantoches alinhadas com a Casa Branca estão mais enfraquecidas em função do recrudescimento das dissidências populares, e que, por isso, os interesses do império estadunidense na região podem estar ameaçados. Contudo não meçamos o posicionamento do império a partir de poucas frases. Em face das críticas ferrenhas das mesmas autoridades ao governo iraniano e à brutalidade contra as vozes dissidentes no país dos Ayatollahs, críticas essas que, como sabemos, em nada têm a ver com preocupações democráticas, e são simples retórica do governo estadunidense para manufaturar consenso contra governos que não seguem as ordens de Washington, cairia muito mal aos EUA se não se posicionassem publicamente de forma semelhante quanto ao que vem ocorrendo no Egito, dado a dimensão dos acontecimentos. Mas daí inferir que esse “apoio” ao descontentamento popular no Egito sugere que o império esteja mostrando sinais de reconhecimento do enfraquecimento da sua influência nos rumos dos acontecimentos políticos na região e que, além disso, aponta para o começo de uma revisão de uma estratégia que segue a mesma desde a Guerra Fria, soa inocente demais. Basta atentar para a presença militar estadunidense na região e as ameaças ao Irã para evitamos tal raciocínio.
          É muito mais provável que Washington tema que um movimento de massa dessa proporção sirva de exemplo e estímulo para a população de ditaduras na região alinhadas com a Casa Branca, como as monarquias saudita e jordanianas. Alguma dúvida de que os apoios públicos do rei saudita Abdullah e do rei jordaniano Abdullah II a Mubarak foram feitos sem o consentimento de Washington? Os receios diante da "instabilidade" que a situação política egípcia provoca na região, levaram até mesmo o presidente da Autoridade Palestina, segundo o Observatório dos Direitos Humanos, a autorizar que forças policiais em Ramallah, na Cisjordânia, rechaçassem uma passeata de palestinos em solidariedade ao levante popular no Egito.
         É muito cedo para dizer se a antiga ordem de alianças no Oriente Médio está acabando, e se, como consequência, os Estados Unidos estão dispostos a pensar novas estratégias de atuação na região. Os impactos das transformações em curso sobre o colaboracionismo entre Washington, Cairo e Tel Aviv podem, a médio prazo, forçar uma mudança na geopolítica da região. Repito, "podem". Mas é pouco provável que um governo de transição que venha a suceder a queda de Mubarak - mesmo que num primeiro momento, afrouxe os laços com Israel para atender as demandas da população - rompa com Washington . E isso basicamente por duas razões.
         Primeiro que, como já disse, as principais demandas da população estão voltadas para questões internas; e, segundo, que o governo interino e, depois, o futuro governo eleito - provavelmente formado por uma coalizão da atual oposição – estará ciente dos custos de um tal posicionamento de rompimento com Israel e a Casa Branca. Aos olhos das elites políticas oposicionistas, eles seriam muito maiores que os benefícios. O complexo militar egípcio depende, como já falamos, profundamente da ajuda militar estadunidense. Numa região de grande tensão como o Oriente Médio, sabemos quão importante é para um Estado com a influência regional do Egito estar bem preparado e equipado para conflitos. Além do mais, sempre que em um levante popular as Forças Armadas se recusam a enfrentar a população e defender o governo, o seu poder de barganha nas negociações com o governo que sucede a queda do anterior aumenta consideravelmente. Não me parece que os militares egípcios estarão dispostos a perder 1.5 bilhões em ajuda anual. Pois, caso seja mantido como condição para que o Egito continue recebendo essa ajuda a continuação da colaboração com Israel, é bem provável que os militares pressionem o novo governo a manter as boas relações com seu vizinho. Se depender das elites políticas, e falo também da elite oposicionista, mesmo um novo governo não quebrará as regras do jogo firmadas em Camp Davis.


Poder popular.
      O que é claro até agora é que questões referentes à política externa são questões secundárias nas reivindicações dos manifestantes que ocupam as ruas e praças das cidades. Os protextos são fundamentalmente uma revolta por pão, trabalho e liberdade.
     Mas caso as demandas por uma mudança fundamental das estruturas de governo se concretizem, e o povo egípcio venha a ter uma participação incisiva nos rumos do Estado, as relações de subserviência do Estado egípcio com o imperialismo estadunidense e o colaboracionismo com Israel poderão, sim, ser afetadas.
        O que estamos vendo nas ruas do Egito, e de forma mais pulsante na sua capital, é a força de uma população cansada de viver, por gerações, sob a brutalidade de regimes despóticos, que excluíram por décadas a população de qualquer participação política. É um movimento de massa em batalha contra o governo. E nesta batalha o governo parece estar perdendo. Não é uma revolta popular isolada. Dissidências populares já surgiram em outros país.
      Se esses levantes serão capazes de criar poder popular forte e adquirir proporções que impulsionem uma trajetória revolucionária no Norte da África e Oriente Médio que fuja completamente ao controle dos governos e abalem os interesses imperialistas na região, somente os futuros desdobramentos dos acontecimentos nos dirão. Por hora, cabe a nós completa solidariedade com o povo na região que marcha e clama por liberdade e participação, e torcer para que o poder popular sufoque a tirania das minorias que governam.



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2 comentários:

  1. Excelente diagnóstico sobre o histórico momento que estão vivendo vários paises, do Oriente Médio e África. Submetidos a ditaduras autocráticas os quais produziram concentração de renda e exclusão social, visto que no Egito, 40% da população é absolutamente miserável, parece que estes regimes atingiram um tal nível de injustiça, desgoverno e de privilégios a casta dirigente que a sustentação destes parece ser impossível. O que virá agora? Teremos outra ditadura, agora militar? Ou pior, se é que isto é possível, uma ditadura teocrática? Ou será que teremos uma transição para um sonhado, por muitos, regime democrático, com a participação de todas as classes sociais presentes no Estado Eípcio? A chegada de um regime democrático passa por uma complicada transição. Falta ainda a cultura dos valores da democracia. A Internet tem prestado grande serviço no processo revolucionário que estamos presenciando. Quizáz uma nova maneira de ver os direitos da população esteja acontecendo nos países árabes. A figura do "pai da nação", macho alfa que diz ao povo o que deve ser feito para o "bem da nação", comece a ser questionado através de ferramentas como a internet. O poder de articulação e motivação tem efeito devastador, conforme estamos vendo. Riscos imensos estão por toda parte. O processo é dificil, porém, acredido que depois do acontecido, com a presença de tantos setores da sociedade egipcia, é possível que vejamos o surgimento de um novo País, mais solidário com seus desfavorecidos, socialmente mais justo e com seu povo, mais feliz.

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