domingo, 6 de fevereiro de 2011

Os levantes populares em países árabes: uma luta por valores universais.

O poder da revolta popular em curso no Egito vem provocando o medo nos poderes ocidentais e em Israel de que a insurreição, que tem levado às ruas quase 2 milhões de pessoas somente no Cairo, capital do país, leve a uma nova alternativa política que abale a ordem geopolítica da região. Todos os estereótipos proferidos por autoridades ocidentais e israelenses e pela grande mídia desses países de que à queda de Mubarak sucederia um regime fundamentalista islâmico antagonista à Israel, de que as manifestações são lideradas pela Irmandade Muçulmana, maior partido de oposição à ditadura, em suma, de que a população nos países islâmicos prefere ditaduras fundamentalistas, são palavrórios ideológicas para proteger os interesses das potências ocidentais, que temem que essa onda de manifestações se estenda para toda a região.

As palavras de Tony Blair de que o ocidente precisa gerenciar a situação de transição é a síntese desses slogans repetidos sem cessar. A tentativa é de construir a imagem de que o mundo islâmico não é afeito à democracia burguesa, e que, portanto, antes uma ditadura que mantenha "a estabilidade e segurança" na região a um fundamentalismo avesso "às benesses do ocidente".

Ora, sabemos que todo esse teatro ideológico de cenas estereotipadas, que repetem a narrativa falsa de que as populações islâmicas são, na sua maioria, fanáticos que seguem cegamente líderes religiosos, não passa de clichês manufaturados para servir aos interesses de alguns países ocidentais e de Israel e na região.

Os levantes populares no Egito e Tunísia mais uma vez desnudam a mentira desse discurso hegemônico no ocidente. Por isso a fala de Blair pode ser traduzida nos seguintes termos: "aceitamos mudanças desde que a situação global permaneça a mesma, pois democracia no oriente põe em risco nossos interesses".

As revoltas populares marcham e clamam por justiça social e liberdade. Os acontecimentos no Norte da África e Oriente Médio, todos em países há décadas sob regimes ditatoriais alinhados com as potências ocidentais, resultam fundamentalmente de uma questão social. As pessoas demandam dignidade, direitos humanos e justiça econômica. Demandas que refutam os argumentos do multiculturalismo e de algumas baboseiras pós-modernas que negam a universalidade de valores como liberdade e justiça. As revoluções em curso são justamente pela realização de valores universais: justiça social, autonomia , liberdade, etc. Por isso a obrigatoriedade, por um lado, da nossa solidariedade com as revoltas, e, por outro, em procurar desmascarar as ideologias e pseudo-teorias relativistas, que somente servem para legitimar o imperialismo e desumanizam outros povos.

A propaganda vigente apresenta a Irmandade Muçulmana, partido oposicionista mais popular no Egito, fundado em 1928 contra o nacionalismo secular, como estando por tras das manifestações. E isso é uma mentira. O que ocorre é justamente o oposto. Tamanha é a predominância das exigências universais da sociedade egípcia, que lideranças do partido, em pronunciamentos públicos, estão tendo que falar a linguagem da democracia, dos direitos humanos, da liberdade, etc. Não são os religiosos nem outras lideranças da oposição que estão impulsionando as massas, são as próprias massas que estão carregando a oposição com elas.

Além da autonomia das manifestações em relação aos partidos oposicionistas, o fato é também que esses partidos não são um bloco monolítico, como a propaganda ocidental os apresenta. Há tendências diversas, por exemplo, dentro da Irmandade Muçulmana. Há uma tendência alinhada com a interpretação saudita do alcorão, mas há outra próxima da interpretação mais secularista hegemônica na Turquia. Pouco se fala também, por razões claras, das origens do partido e das transformações pelas quais passou nos seus mais de 80 anos de existência. Na sua origem, a Irmandade Muçulmana era um movimento ante-colonialista e contra a repressão. E muito do crescimento do setor mais radical se dever, em parte, segundo Tariq Ramadan, intelectual egípcio, ao fato de que quando Nasser subiu ao poder, numa plataforma de nacionalismo laico, muitos integrantes da Irmandade foram presos, assassinados e exilados. E, em decorrência desses exílios, a Irmandade cresceu em outros países, adquirindo características diferentes, sendo impossível concebê-la como um partido de orientação única e imutável.

Todo esse acobertamento confirma a manobra das propagandas no ocidente de simplificar uma realidade política e social multifacetada, como a do Egito, a meia dúzia de estereótipos reproduzidos sistematicamente em todos os meios de informação hegemônicos, e apresentados como verdades "auto-evidentes". E tudo para justificar o apoio a ditaduras em nome da segurança e estabilidade, que não são outras senão segurança e estabilidade para o livre curso do imperialismo na região.

A dissidência popular no Egito e Tunísia mostra sinais claros de que não quer nem governos fundamentalistas nem pseudo-democracias fantoches . A democracia burguesa dos países ocidentais não impediu - e não pensem que isso seja ignorado pelas populações árabes - que nesses países o poder, governo e riqueza estivessem nas mãos de uma pequena minoria, que parcelas significativas da população estão desempregadas, marginalizadas e perderam quase todos os benefícios conquistados. Sobretudo a partir da crise de 2008, os países ocidentais já não conseguem esconder do mundo que a democracia burguesa faliu, e que nunca foi além de uma democracia política, muito longe de se realizar economicamente. A xenofobia e o crescimento da direita e de orientações neofascistas nos Estados Unidos e países europeus, só podem fazer um árabe rir quando qualquer autoridade ocidental fala de Estado laico. Além disso, que fundamento e moral há em países como os Estados Unidos, onde 30% das pessoas ainda acreditam em fantasmas, e comprometimentos religiosos de políticos e seus partidos determinam eleições, para asseverar que as populações dos países árabes preferem ditaduras fundamentalistas? Não seria grande parte da população ocidental muito mais afeita a ilusões e mentiras, sobretudo as falsidades que o aparato de propagando, tão sofisticado nesses países, forja sobre os países árabes e o resto do mundo?

O que guia os protestos em massa no Egito e Tunísia são demandas por direitos universais em face do desemprego em massa, pobreza, corrupção, injustiça econômica, autoritarismo, repressão, falta de liberdade, etc. E a população sinaliza saber que somente as quedas de Ben Ali e Mubarak não são o suficiente. E que só com uma política de "redistribuição de renda e rompimento com a ditadura do mercado e o imperialismo"( http://www.anarkismo.net/article/18558 ) será possível materializar a justiça social e democracia ansiadas.

A insurreição na Tunísia derrubou a ditadura de Ben Ali, mas as lideranças em torno de governo transitório a ser formado por uma coalizão de partidos, inclusive com políticos ligados ao ex-ditador - que prometeram eleições para daqui 2 meses - pretendem acalmar uma revolta que é social, e solucioná-la em termos políticos. Quando autoridades ocidentais propositalmente falam em dirigir a situação de transição é por se preocuparem em, não podendo evitar o levante popular, ao menos evitar que ele se transforme em revolução social. Ou seja, não dando para manter o ditador, que seja estabelecida uma pseudo-democracia subserviente capaz de acalmar as massas.

Por isso que o maior desafio colocado às populações desses países é, com a derrubada de uma ditadura, como conseguir que uma insurreição, fundamentalmente social, não termine sendo abafada por uma mudança apenas política: elege-se um novo governo, forma-se uma nova elite política – na maioria das vezes nem tão nova assim - e as condições sociais continuam as mesmas.

Por essa razão que a luta por liberdade, justiça social e autonomia apenas começa com a derrubada de um tirano. As populações do Egito e Tunísia vêm demonstrando fôlego para continuarem suas demandas e manterem a luta até que de fato a democracia seja econômica e social, e, portanto, uma revolução de fato, pois somente o povo organizado será capaz de resolver os problemas que enfrentam seus países.

Os levantes na Tunísia e Egito, em menor escala em outros países da região, são uma luta que fala a todos os oprimidos. Pela universalidade de suas demandas, o que se presencia no Norte da África e Oriente Médio é a força social que o poder popular pode ter, onde quer que ele surja.

Toda solidariedade aos levantes populares nos países árabes! Todo poder ao povo organizado!
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