OBS: Este texto foi escrito para ser lido em um debate público sobre o papel da juventude nas revoluções e insurreições populares nos países árabes, por isso há nele trechos de outros textos que escrevi sobre o que vem ocorrendo nos países árabes. Contudo, não foi possível comparecer. Mesmo assim compartilho publicamente o texto.
A auto-imolação, na Tunísia, do jovem Mohammed Bouazzi, bacharel desempregado, após ser humilhado nas mãos de uma autoridade policial e ter sua carroça onde vendia frutas para sobreviver confiscada, desencadeou uma revolta popular que derrubou um dos regimes mais autoritários do mundo árabe e iniciou uma onda de levantes e revoluções que não ocorriam em proporções semelhantes desde a queda do Bloco Soviético. As razões que, em grande parte, levaram Mohammed Bouazzi a este ato de desespero são emblemáticas das condições sociais e políticas que, sem dúvida, vêm sendo os elementos impulsionadores das insurreições populares nos países árabes: ditaduras há décadas no poder, exclusão de qualquer possibilidade de participação política da população, ausência de liberdade, empobrecimento da maioria da população, desemprego em massa, desigualdade de salários e oportunidades, etc. Condições que se traduzem em três termos: liberdade, pão e trabalho.
Mas também o fato de Bouazzi ser jovem, bacharel e desempregado, muito diz sobre a realidade desses países. Na grande maioria dos países árabes mais da metade da população tem menos de 30 anos de idade. Em todos eles é o setor da sociedade que mais sofre com o desemprego. Só na Tunísia cerca de três quartos dos desempregados tem menos de 30 anos, e os jovens com Ensino Superior, mas desempregados, somam 22%, contra 14% da média nacional. A maioria dos outros países na região exibem dados semelhantes.
Por isso, a papel da juventude na organização das insurreições vitoriosas na Tunísia e Egito, e as em curso no Yemen, Argélia, Bahrain, etc., não deve surpreender. Primeiro porque a participação dos jovens nas grandes transformações políticas e sociais no mundo árabe sempre foi muito forte, e segundo porque nas atuais revoluções os jovens são os setores da população que mais têm sofrido os efeitos diretos de anos de regimes que, além de brutais e autocráticos, foram os responsáveis pela implementação violenta das políticas neoliberais nos países árabes. É sintomático da situação atual o fato de que os dois levantes populares que derrubaram seus ditadores, ocorreram nos países que primeiro institucionalizaram as políticas neoliberais no mundo árabe.
Nestes países – assim como em todos, mas de modo mais forte em Estados sob regimes autocráticos – a aplicação do dogma neoliberal formou impérios em que os negócios e a política governamental estão tão entrelaçados ao ponto de ser impossível distinguir o que é público e o que é privado. No Egito os donos da maioria das empresas privatizadas nos últimos 15 anos são militares ligados à ditadura de Mubarak , muitos dos quais certamente hoje compõem o Conselho Militar que está coordenando o processo de transição. No Tunísia o setor privado em grande parte é controlado por membros da família da esposa de Bem Ali, a própria família de bem Ali e políticos e empresários beneficiados pelo antigo regime.
Como consequência do estabelecimento da doutrina neoliberal nestes países, o que vemos é o fundamentalismo do mercado imposto aos pobres, supressão do trabalho organizado, privatização e sucateamento dos sistemas de saúde e educação, quedas ou estagnação dos salários referente à inflação, aumento do desemprego (ano passado, segundo dados oficiais, no Egito o desemprego estava em 9,4%), que é muito mais alto entre a juventude, etc. As ditaduras no mundo árabe cumpriram o papel de salvaguardar a santidade do mercado, mediante um aparelho repressor de estado constantemente alerta e legitimado por uma lei de emergência sempre ativa em um governo ditatorial.
Assim, a participação central da juventude em revoluções que não somente depuseram regimes ditatoriais, mas nas primeiras revoluções com características claramente anti-neoliberais, tem muito a dizer a todo o mundo, e particularmente aos jovens conscientes do fracasso - ou melhor dizendo - falácia do neoliberalismo em trazer bem-estar humano para as populações.
É inegável a importância das redes sociais como ferramentas descentralizadas para burlar a repressão, organizar os protestos e conectar as pessoas nos países convocando-as para atuar em solidariedade - principalmente em países onde as censuras na mídia tradicional são tão eficazes. Contudo, o que mais importa destacar é que essas novas ferramentas têm sido um meio de se articular para, em seguida, atuar nas ruas, ou seja, ir para a ação direta.
O foco, a meu ver exagerado, dado às novas mídias pela imprensa, muitas vezes manufatura a idéia de que as redes sociais foram o fator determinante para o levante de 25 de janeiro no Egito. Elas foram importantes, mas não tão centrais quanto parecem. A media social ajudou a organizar o movimento que derrubou Mubarak, mas o que fundamentalmente levou milhares de pessoas para as ruas ao lado dos ativistas pró-democracia - muitas das quais sem conexão com as redes sociais – juntando forças para se sobrepor à força do aparato de segurança do Estado, foram as injustiças econômicas agravadas consideravelmente com a consolidação do neoliberalismo na região. Não tenham dúvidas que muitos dos jovens que ocuparam as ruas das principais cidades do Egito nos 18 dias que antecederam a queda de Mubarak, sobretudo os jovens trabalhadores das classes populares, não estavam nos protestos porque se articularam pela internet.
Quem melhor explica a função da media social nas mobilizações é justamente um ativista blogeiro egípcio que em 2008 foi preso pelo regime, como muitos outros, em decorrência da sua atuação política: “quebramos com a idéia de se escrever e não fazer nada. Não é somente palavra, é palavra e ação. E é isso que preocupa muito". A repressão e brutalidade do governo com esses jovens escritores e documentaristas não foi somente por causa do conteúdo do que escrevem e noticiam. Mas antes de tudo porque partiam para ação direta.
O que incomodava o regime é que esses jovens se articulavam via redes sociais para atuar nas ruas, ir para a ação direta junto com o restante da população. Ao noticiarem e opinarem sobre os fatos - quer estando nas ruas ou presos – e continuarem com a campanha pela liberação dos que ainda estavam presos - os ativistas mantiveram a comunidade internacional informada sobre os acontecimentos, contribuindo, com isso, para criar uma rede internacional de solidariedade à revolta popular e de repúdio à brutalidade do regime. Eles estavam com a população, e não foram, obviamente, vanguardas de um suposto ativismo digital, e que colocavam milhões nas ruas com simples mensagens rápidas no twiter e a partir de comunidades no facebook.
Tanto é que o principal movimento no Egito de ativistas na rede social, o Movimento 6 de Abril, surgiu justamente em apoio às greves de trabalhadores reprimidas pelo regime em 2008, na cidade industrial de El-mahalla El-Kudra. E é a dimensão que atingiu a coordenação e articulação dessa solidariedade, iniciada sob forte repressão, dos jovens ativistas com as lutas e demandas dos trabalhadores, que deu, inegavelmente, força às manifestações que não começaram em 25 de janeira, mas que a partir desta data adquiriram as proporções que levaram à queda de Mubarak. No Egito, as manifestações iniciadas no fim de janeiro são o coroamento de no mínimo cinco anos de greves, motins, lutas locais e regionais. Por isso que a continuação da solidariedade entre as vozes dissidentes e os trabalhadores, agora, mais do que nunca, será central também, pois é nas greves e continuação dos protestos dos trabalhadores que tem se mantido com mais fervor, tanto antes quanto depois da queda de Mubarak, as reivindicações que alimentaram os protestos em massa, e das quais depende a radicalização do processo democrático em curso.
Esse apoio mútuo entre os ativistas e os trabalhadores - com mais força no Egito, mas também considerável nos outros países da região em que os protestos têm abalado seus regimes - tem muito a ensinar os movimentos estudantis aqui do Brasil, que, na sua grande maioria, salvo algumas raras exceções, estão tão distantes das ruas, sem contato com os movimentos sociais e aparelhados por partidos. No Egito, o regime não autorizava a existência de organizações estudantis, sindicatos e movimentos sociais. E mesmo assim, em condições muito mais adversas do que a nossa, parte considerável da juventude se organizou junto com os trabalhadores, tentado construir, apesar da repressão, redes de apoio mútuo entre setores da sociedade que tentavam - muitos na clandestinidade - construir uma força popular capaz de fazer frente ao regime.
Não há dúvida que por causa de serem essas revoluções e insurreições populares os acontecimentos mais importantes da história contemporânea desde o colapso dos países do Bloco Soviético, por causa de serem as primeiras revoluções com caráter anti-neoliberal e de ocorrerem numa região tão estratégica como o oriente Médio e Norte da África, seu impacto adquire proporções e direcionamentos ainda imprevisíveis. A ordem geopolítica da região já não será mais a mesma, e a política de apoio até então incondicional das potencias ocidentais a maioria dos ditadores árabes terá que ser revista para se adaptar às novas condições políticas e sociais que surgirão desta onda ainda inconclusa de revoluções. As revoluções que eclodem no mundo árabe indicam uma possível mudança na ordem política na região unicamente por força do poder popular das insurreições. Qualquer mudança nas relações entre os Estados no Norte da África e Oriente Médio e nas estratégias do imperialismo para região, será - não há dúvida - impulsionada pela pressão popular, e não pelas elites políticas e econômicas, para as quais o clientelismo e proximidade de interesses com as ditaduras derrubadas não deixam margens para mudanças bruscas de direção.
As ditaduras da região que ainda não caíram estão abaladas, forçadas a fazer concessões, e, depois de Tunísia e Egito, ninguém consegue prever qual será a próxima tirania a cair. No Bahrain, Líbia, Argélia, Yemen e Jordânia as populações se levantam contra seus governos não apenas porque inspiradas pelos exemplos dos povos da Tunísia e Egito, mas também porque a urgência das demandas dos protestantes nestes países são as mesmas: renúncia do ditador, justiça econômica, liberdade participação política, direito de escolher seus lideres, etc.
A canção do rapper tunisiano, conhecido como Él General, hino de batalha nas demonstrações populares na Tunísia, depois emprestada pelos manifestantes na Praça Tahrir, e agora na boca dos protestantes no Bahrain dão o tom destes protestos, que exigem as mesmas justiças, expressam o ódio contra a pobreza e a opressão, mostram coragem de enfrentar as tiranias, e, por isso, carregam os mesmos valores: “Senhor Presidente, seu povo está morrendo / Senhor Presidente, seu povo está comendo lixo / Olhe o que está acontecendo / Miséria em todo lutar, senhor Presidente / Eu falo sem medo / Embora eu saiba que terei só problemas com isso / Eu vejo injustiça em todo Lugar”.
Mesmo que não esteja explícito, para grande parte dos manifestantes, que sua revolta é contra os efeitos nefastos da aplicação das políticas neoliberais em seus países, as demandas, que expressam as expectativas de uma maior justiça econômica e social, mostram que as classes populares dos países árabes exigem um basta de tanta desigualdade e exclusão. Se isso de fato ocorrerá, dependerá em muito da continuação da combatividade popular para além da queda de um ditador.
O que é certo é que as revoluções no mundo árabe, dado a sua demonstração inspiradora de poder popular, anunciam para o mundo, nas palavras de Frank Mintz, que “o capitalismo, bem mais que o Islã, impõe o porte do véu para homens e mulheres. O véu do pensamento politicamente correto, da hierarquia benfazeja, do egoísmo redentor, do dinheiro antes de tudo”.
Que o poder de revolta do povo árabe inspire os povos oprimidos de todos os continentes!
Hello from Agius.Cloud to the World!
Há 2 anos
Ótima análise!
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