A reestatização do petróleo e gás argentinos, com
ampla aprovação popular pelo governo de Cristina Kirchner, assim como no caso
da nacionalização dos hidrocarbonetos na Bolívia em 2006, provocou na mídia
oligárquica, como esperado, uma chuva de ameaças e “supostas previsões” dos
danos que isso pode causar à economia do país. Isso para não mencionar os
argumentos recorrentes de que a reestatização violaria contratos “legalmente”
efetivados entre o governo e o setor privado. Mas esses argumentos se revelam falácias
neoliberais assim que nos detemos aos fatos.
A onda neoliberal de privatizações, que ocorreu
em especial na década de 90 do século passado, conduziu os países
latinoamericanos a uma dependência ainda maior do capital internacional,
passando para capitais privados setores estratégicos da economia, que sempre
são fontes de receita importantíssimas para o Estado. As privatizações na
América Latina foram conduzidas à revelia de sua população, engordaram os
cofres de multinacionais que, a preços de banana, adquiriram o direito de
explorar nosso petróleo, gás, minérios, etc., e enviar os lucros para seus
países de origem. O caso boliviano é emblemático no tocante à renacionalização
de um setor estratégico que viabilizou uma fonte de divisa – antes toda enviada
para o exterior – que retorna em investimentos em políticas de saúde, educação,
moradia, etc., nunca anteriormente implementadas no país, que até então era o
mais pobre da América do Sul.
A Argentina é, sem dúvida, um dos países que mais
sofreu os efeitos da política imperialista de privatizações, por ter seguido à
risca os imperativos do consenso de Washington. As políticas econômicas
neoliberais levaram o país a sua pior recessão entre 1998 e 2002. Mas ele vem
demonstrando o conteúdo ideológico – desde que declarou moratória da sua dívida
externa – do discurso fomentado por Washington, FMI e OMC, de que
não manter “os compromissos” com as instituições financeiras internacionais
conduz, necessariamente, à inflação galopante, escassez de divisas, e que,
somado ao fechamento do crédito internacional, provoca a falência do país.
Nos últimos 10 anos, o PIB argentino cresceu 90%
e os investimentos sociais praticamente triplicaram. A renacionalização do
petróleo e gás parece, com isso, ser mais um passo de Buenos Aires para
reverter parte dos danos causados por mais de uma década dogmatismo neoliberal.
57% da companhia de petróleo argentina, a YPF, estava em mãos da Repsol,
empresa espanhola, e já há 7 anos que a extração de petróleo do país baixou
quase 20%. Dado o fato de o país, como salientou Mark Weisbrot no artigo
replicado no Outras Palavras, ter dificuldade com empréstimo no mercado
financeiro, a nacionalização do petróleo e gás será determinante para a
Argentina “acumular um volume importante de divisa”, tanto a fim de evitar uma
crise na balança de pagamento, quanto para poder investir no desenvolvimento
interno.
Reassumir o controle do setor energético é
substancial para a soberania e independência de um país. Entretanto, isso de
nada adianta caso os recursos gerados por essas fontes não forem revertidos
para a população através de investimento sistemático em políticas públicas. A
Venezuela tem mostrado métodos para que a principal fonte de receita de um país,
no caso venezuelano o petróleo, possa ser posto a serviço de sua população por
meio de programas que visam fomentar políticas sociais não meramente
assistencialistas, mas que mobilizem o povo e as organizações populares, e
incentivem sua participação como sujeitos de tais programas. No caso
venezuelano podemos citar as Missões Sociais, as Universidades Populares, os
Conselhos Comunais, as Comunas e muitos outros.
Os exemplos dos governos progressistas da
Venezuela, Bolívia e Argentina, não somente têm contido o avanço do
neoliberalismo em nosso continente, como também evidenciado que muitos dos
danos das políticas econômicas neoliberais podem ser revertidos se houver
vontade política para tal, principalmente porque qualquer decisão que sugira
fortalecimento da soberania do país continua a receber apoio da maioria da sua
população.
Olhando para o Brasil – a partir do exemplo dos
nossos hermanos – já no terceiro mandato do PT, vemos como, apesar do apoio que
sem dúvida receberia da sua população, o governo brasileiro não mostra indícios
de renacionalizar setores fundamentais privatizados durante o governo FHC, por
exemplo, o setor de mineração. Está certo que o Brasil não levou a cabo as
privatizações com tanto afinco como na Argentina, mas não nos esqueçamos que
isso se deveu em muito à pressão exercida pelos setores populares, e não por
intenções estratégicas de realizar uma política moderada de privatizações.
O país, nos últimos anos, continua a camuflar esse regime de vendas de estatais. Por meio da estratégia de Parcerias Público-Privadas – a pele de cordeiro, o eufemismo usado sem parcimônia – o governo usa os créditos do BNDES para financiar grandes empresas privadas, sobretudo as empreiteiras que, engordando seus cofres com as licitações ganhas para obras do PAC, adquirem direitos de explorar por décadas os recursos naturais, destruindo o meio-ambiente, superexplorando a mão-de-obra dos trabalhadores e violando o direito dos povos originários de decidir sobre o destino dos seus territórios. E em muitos casos com risco zero para essas empresas, com o governo arcando com todos os prejuízos que venham a ocorrer.
Quanto à dívida pública, ao contrário do Equador,
que realizou uma auditoria à respeito e concluiu que há muito já havia pago
grande parte dela, declarando que só aceitava entre 25 e 30% do valor dos
títulos, continuamos a pagar altos juros, cortando, para manter nosso superávit
fiscal, investimentos em políticas públicas e gastos sociais dos setores mais
empobrecidos da população. Quase metade do orçamento público tem sido usado
para pagar juros e amortizações da dívida pública.
Numa conjuntura econômica como a atual, em que a
Europa e EUA continuam mergulhados na crise desde 2008, o exemplo argentino
aponta que pode haver sim alternativa aos países da periferia do euro, cujos
governos têm aceitado todas as imposições de ajustes fiscais e cortes nas
políticas públicas, obrigando, no limite do insustentável, suas populações a
pagar com desemprego ainda mais impostos e privatizações os demandes dos bancos
e de seus governos. Há, sim, uma primeira saída rumo a uma soberania: a
moratória.
O que falta é coragem política para os governos
desses países seguirem os anseios de suas populações, que dado o seu
descontentamento expresso em manifestações e greves, apoiarão medidas que
enfrentem a voragem dos bancos credores e a pressão dos países centrais da zona
do euro, que sediam esses bancos, rompendo com a União Europeia e com sua
condição de Estados reféns do capitalismo financeiro.
Em especial para os países periféricos
da zona do euro, Buenos Aires tem mais a dizer sobre radicalização da sua
soberania do que o nosso glorioso Brasil
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