É
comum na academia, marxistas ou simpatizantes do marxismo argumentarem, quando
fazemos qualquer crítica às teses centrais do marxismo ortodoxo (etapismo, economicismo, obrerismo, etc),
que esse dogmatismo já foi há muito superado no marxismo, e que, durante o
século XX, revisões profundas foram realizadas por pensadores das mais diversas
nacionalidades.
Não
há dúvida que na academia muitos dos dogmas do marxismo ortodoxo sofreram
críticas sistemáticas, e, em muitos casos, se não foram abandonados por
completo, passaram por profundas revisões. Mas entre revisões realizadas no
âmbito da academia e a sua concretização em teorias e práticas abraçadas por
sindicatos, partidos e movimentos sociais, existe uma distância considerável. A
crítica à ortodoxia marxista, ortodoxia cuja expressão hegemônica ainda é o
bolchevismo, permanece ainda atualíssima quando é feita a partir da perspectiva
militante, e não nos departamentos de filosofia, sociologia, economia, ciência
política, história, etc. Em
grande parte dos movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos
combativos, a maioria das teses e metodologias que fundamentaram e fundamentam
as interpretações da realidade e as práticas da militância ainda são teses e
metodologias características da ortodoxia marxista.
Quanto
ao modelo de organização, as organizações apresentam, na sua maioria,
estruturas internas rigidamente verticalizadas, com centralização das decisões
em uma pequena elite dirigente (centralismo
democrático). Quanto às suas teses, ainda vigoram as concepções da precedência
do econômico sobre o político e cultural (sendo os dois últimos supervenientes
do primeiro), a centralidade do operário industrial como o sujeito revolucionário
e projeções teleológicas de que a cada crise do capitalismo o seu fim se
configura no horizonte, etc. Tais proposições são ainda marteladas em cursos de
formação para a militância, e orientam os rumos das organizações e as práticas
de muitos dos seus militantes, e, em especial, dos seus dirigentes.
Claro
que nem todas as teses são defendidas em todas as organizações, mas, de modo
geral, sempre há um conjunto delas hegemonizadas nos movimentos e partidos.
Afora as teses, ainda o mais danoso às organizações é, de longe, o modelo
organizacional que ainda vigora em quase todas elas, salvo poucas exceções. As
estruturas verticalizadas têm sido, recorrentemente, as principais causas
internas de burocratização dos movimentos, imprimindo, em parte, nas
organizações sociais e políticas um descolamento entre base e direção que só
contribui para a desmobilização e a inviabilização estrutural do protagonismo
dos militantes da base, tão essencial para que as organizações não percam sua
combatividade, força e perspectiva revolucionária.
Entretanto,
apesar do modelo bolchevique de organização ser muito mais danoso às
organizações de esquerda do que teses como as da centralidade do operariado
industrial e de que, necessariamente, o capitalismo nos conduzirá, em virtude
das suas contradições internas, a um modo de produção superior, ou seja, o
socialismo, não se pode negligenciar a copresença recorrente nas organizações -
ainda que não necessária - do modelo de organização verticalizada, das teses da
vanguarda revolucionária (aquela que introduz de fora a consciência
revolucionária na classe) e da centralidade do operariado industrial.
Um exemplo recente de uma
disposição caricata dessa relação ocorreu no ato, chamado pelo PSTU, em
solidariedade a Pinheirinho. O ato que saiu do centro da cidade de São José
dos Campos e terminou na prefeitura, estava disposto da seguinte maneira: na
frente, iam os dirigentes do partido (vanguarda
iluminada); logo atrás, os militantes do partido (órgão que unifica a classe e a guia rumo à revolução). Em um
terceiro plano, encontravam-se os militantes da central sindical do partido, a Conlutas, (organização dos trabalhadores submetida ao partido); depois os
estudantes (dentre eles os futuros
dirigentes em potencial). E, por fim, o resto dos movimentos sociais e
independentes (massa amorfa que segue
cegamente seus dirigentes e partido revolucionário, mera correia de transmissão
do partido). Entre cada setor
compartimentado da “cosmovisão” bolchevique do PSTU, havia uma faixa impedindo
o desarranjo da disposição que é dada, a priori, pela “teoria revolucionária” a
cada setor.da classe A cada um a sua posição engessada previamente “na marcha
histórica rumo ao socialismo”.
A
imensa variedade de marxismos que a academia tem produzido nada ou quase nada
influenciou, ate agora, as organizações sociais e políticas da esquerda
marxista combativa. E se isso se deve em muito à própria estrutura das grandes
instituições universitárias no capitalismo, orientadas principalmente para
formar os filhos das classes dirigentes, uma parte importante da “culpa” reside
no fato de que os intelectuais marxistas que reviram os dogmas da ortodoxia, em
especial do bolchevismo, não eram e não são “intelectuais orgânicos”, ou seja,
que dedicaram e dedicam o seu trabalho intelectual em auxiliar a classe
trabalhadora organizada na sua luta contra o capital.
O
bolchevismo, nas suas diversas expressões (leninismo,
trotskismo, stalinismo, maoismo), ainda é a ideologia predominante nas
organizações de esquerda tanto combativas quanto adeptas do jogo institucional
burguês. Com isso não quero dizer que
não houve fora da academia, e sistematizadas teórica e praticamente no calor das
lutas, perspectivas marxistas heterodoxas, que questionaram os postulados e métodos
bolcheviques. Rosa Luxemburgo e os conselhistas são exemplos de alternativa ao
bolchevismo. Tais correntes do marxismo, no entanto, nunca cresceram ao ponto
de pôr em risco a hegemonia bolchevique na esquerda marxista durante todo o
século XX até agora.
A
força que o bolchevismo adquiriu internacionalmente a partir da derrota da
revolução russo, tomada do poder pelos bolcheviques, aniquilação de qualquer
oposição de esquerda, desmantelamento dos sovietes
livres e conselhos de fábrica, resultando na consolidação do Estado soviético
autoritário e imperialista que durou quase oito décadas, foi um dos fatores
essenciais para o fracasso do marxismo “heterodoxo” presente nas lutas de
massa. Mas mesmo após duas décadas do
fim do “socialismo real” e do controle dos partidos comunidas pelo Partido
Comunista Russo, ainda assim o bolchevismo continua a ser a ideologia dominante
nos setores organizados da classe trabalhadora. E esse quadro geral de
dogmatismo teórico e prático na esquerda marxista não alterará nada se novas
propostas e recuperação de antigas não sairem de dentro das organizações sociais
e políticas, alimentando-se de práticas novas e antiautoritárias da própria
classe, e engendrando metodologias de prática e análise capazes de se apresentarem
como alternativas ao bolchevismo.
Caso contrário, as
teses e práticas bolcheviques continuarão a confeccionar o mais do mesmo, e a
heterodoxia do marxismo permanecerá sendo gestada de intelectuais para
intelectuais, sem que, em função do seu distanciamento do “mundo da vida”, faça
o menor sentido como ferramenta que auxilie a classe trabalhadora na luta
contra o Estado e o capital.
Muito bom o texto, companheiro!
ResponderExcluir