quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma breve história da relação entre o Haiti e os Estados Unidos

A militarização estadunidense da operação humanitária no Haiti, com o envio de 16.000 soldados, um porta-aviões, navios de busca, controle sobre o único aeroporto do país e seu tráfico aéreo, priorizando os voos militares aos humanitários, revelou apenas mais um capítulo na história da política de intervenções sistemáticas dos Estados Unidos na ilha caribenha.
Quando os haitianos se libertaram da ocupação francesa em 1804, mediante uma revolução de escravos que venceu ninguém mais que Napoleão, fundando, assim, tanto a primeira república da América Latina quanto a primeira república negra das Américas, os Estados Unidos, então um país escravocrata, temendo que o exemplo dessa revolução se espalhasse em seu território e por todo o continente, não reconheceu a independência do Haiti. Reconhecimento que só veio ocorrer sessenta anos mais tarde. Junto com a França, forçou a ilha a pagar indenização de 150 mil francos ao país europeu pelos escravos que foram libertos. Sem dinheiro para essa quantia, o Haiti foi forçado a emprestar dinheiro de bancos americanos e franceses. Essa dívida somente foi quitada em 1947, e estimasse que no total tenha sido o equivalente a 20 bilhões de dólares!
Em 1915, os Estados Unidos, sob o governo de Woodrow Wilson, por causa da recusa do governo haitiano em mudar uma lei na constituição que proibia que estrangeiros comprassem terras na ilha, invadiu o país, matando em um único conflito contra as forças de resistência aproximadamente 2.000 pessoas. Os Estados Unidos ocupou o país, inclusive coletando impostos da população e assumindo o controle das instituições governamentais, até 1934.
Um dos mais cruéis regimes ditatoriais na América Latina, a ditadura de "Papa Doc" e "Baby Doc" Duvalier, que durou de 1957 a 1986, foi apoiada economicamente e militarmente pelo governo estadunidense, período no qual o Haiti passou de produtor de arroz (hoje já não produz nada desse grão) e de o grande produtor caribenho de açúcar, a importar grande quantidade de arroz e açúcar estadunidenses subsidiados. Estima-se que 40% de 1.5 bilhão de dólares da atual dívida externa haitiana foi contraída durante o regime dos Duvalier.
No curso da década de 1980, "Baby Doc" e a sempre pequena elite haitiana não conseguiram mais reprimir a massiva mobilização popular contra a exploração e a violência do regime. Após 3 décadas sem eleições, em 1990 a população elegeu como presidente, com aproximadamente 80% dos votos, o teólogo Jean-Bertrand Aristide. Com uma plataforma prometendo uma maior participação popular no sistema político, aumento do salário mínimo, investimento em educação, aumento do imposto sobre importação, e fim das privatizações, Aristide nem teve tempo de levar acabo qualquer política, pois em 1991 foi deposto por outro golpe de Estado. Contudo, em 1994 Aristide, sob permissão dos Estados Unidos, retornou ao poder, sob a exigência estadunidense de não tentar barrar as políticas neoliberais de ajustes e austeridade ficais, continuar com a taxação baixa sobre as commodities norteamericanas, etc., trocando em miúdos, não colocar em risco a estabilidade dos investimentos estrangeiros.
Mesmo com todos esses adendos, Aristide, logo que reassumiu o cargo surpreendentemente aboliu o exército que o havia deposto. Um ato e realização de grande impacto, considerando um pais que em quase toda sua história ou esteve sob ocupação estrangeira ou sob regimes despóticos.
Em 2000, Aristide, apesar de não conseguir realizar modificações socioeconômicas consideráveis, foi reeleito, com seu partido ocupando 90% das cadeiras no parlamento.
Embora não sendo, a princípio, a ameaça que aparentava ser em função de suas propostas anti-neoliberais quando eleito em 1990, aos olhos da pequena elite haitiana, sempre disposta a defender seus investimentos e propriedades, Aristide permanecia uma ameça ao que essa elite considera como estabilidade e segurança: um regime, a despeito de sua crueldade com a maioria da população empobrecida, que assegure o bom andamento dos negócios dessa elite e, portanto, o seu enriquecimento. Segurança e estabilidade, que nos termos dessa elite são somente conquistáveis através de um exército equipado e pronto para controlar e reprimir qualquer mobilização popular.
Em 2002, os Estados Unidos cortou qualquer empréstimo financeiro ao Haiti. E em 29 de fevereiro de 2004, sob a justificativa de que o governo de Aristide por causa da sua instabilidade já não poderia conter os insurgentes, exigiu que ele renunciasse ao cargo. Aristide se recusou a renunciar. Como resposta, o governo norteamericano bloqueou o envio de mais funcionários de uma empresa estadunidense privada que fazia a segurança pessoal do presidente haitiano e se recusou a proteger o governo constitucional de Aristide quando as forças insurgentes chegassem à capital de Porto-Príncipe. Em verdade, as forças insurgentes não estavam às portas da capital, como fez crer o governo estadunidense, e sim distantes no nordeste do país. Convencido de que um comboio das forças armadas dos Estados Unidos o escoltaria a um local onde faria um pronunciamento televisionado para a população, Aristide aceitou sair de sua casa. Contudo, ele e sua esposa foram levados para o aeroporto da cidade e obrigados a embarcar em um avião que os levou para a República Central da África. Desde então, Aristide está proibido de retornar ao país, pelos Estados Unidos, o governo transitório e clientelista de Préval e pela MINUSHTAH (sigla em inglês para Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti), liderada pelo governo brasileiro, que atualmente juntos controlam o país.
O espólio e empobrecimento do país, e a inexistência do mínimo necessário para o fomento de um Estado funcional no Haiti - agravado pelo terremoto de 12 de janeiro - não podem ser compreendidos sem se destacar o papel histórico das elites do país e da política estadunidense em relação à ilha. Corporações dos Estados Unidos, por anos têm se juntado com a elite haitiana para dirigir, por exemplo, maquiladoras que fazem camisetas para marcas americanas, com mão-de-obra a menos de 2 dólares por dia e sob péssimas condições de trabalho.
As migrações em massa de camponeses para Porto-Príncipe, resultado da política agrícola de importação de alimentos subsidiados produzidos nos Estados Unidos, levou a uma explosão nas últimas décadas da concentração de pessoas vivendo em locais precários na capital, sem dúvida vulneráveis a catástrofes naturais, como o terremoto de duas semanas atrás. Uma população que não tem outra alternativa senão viver amontoada, favelizada em locais de risco.
E o agravante, como a jornalista canadense Naomi Klein mostra em seu livro, The Shock Doctrine: The rise of disaster capitalism, é que "enquanto as pessoas estavam cambaleando dos desastres naturais, guerras e agitações econômicas, políticos entendidos e lideres industriais perversamente implementaram políticas que nunca teriam passado durante tempos menos confusos". A situação atual do Haiti de completa devastação, total destruição da sua infra-estrutura já está sendo uma oportunidade para, sob o pretexto de reconstrução do país, corporações se aproveitarem para conseguirem grandes lucros. O que podemos esperar com Clinton e Bush encarregados de juntar fundos para o Haiti?
O povo haitiano tem resistido desde a sua independência, mas em face das dimensões do desastre atual, que é em parte natural e em parte social, que fez  do Haiti não somente o país mais pobre das Américas, mas do mundo, e diante do atraso e lentidão da ajuda humanitária, somente estando lá para ao menos poder dizer algo sobre quão longe pode ir a resistência de um povo.

2 comentários:

  1. Estes relatos são tão importantes pena que a mídia não o faz para mudar estes pensamentos existentes sobre país que vivem do sacrifício de outros.

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