sábado, 20 de fevereiro de 2010

Da beleza como destruição

 A História nos ensinou - embora teimamos em não aprender - que o culto irracional ao embelezamento do mundo como princípio estético a englobar todas as áreas da sociedade, resultou na matança em massa de seres humanos em fábricas da morte como uma missão biológica de higienização antropológica por meio da qual se criaria um novo homem, purificado de todas as causas manifestas e latentes de sua degenerescência. Sim, falo do culto nazista à beleza, ao sangue puro, de como o desejo de esteticização clássica do mundo levado às ultimas consequências num contexto de crise socioeconômica, como no da Alemanha do pós-guerra, foi tanto o discurso de justificação quanto a força motora de grande parte das atrocidades já realizadas por um regime contra cidadãos comuns, civis. E, como sabemos, todo um aparato de propaganda foi desenvolvido pelo regime nazista para veicular esse ideal estético-racista para as massas. Foi no nazismo que pela primeira vez beleza, no sentido artístico, foi completamente reduzida à seguinte equação: saúde mental e física igual a pureza racial. Como muito bem observou o documentarista Peter Cohen em Arquitetura da Destruição, um filme sobre o assunto, "problemas estéticos tornaram-se problemas médicos", e coube à medicina nazista a prática de todas as medidas necessárias e exigidas para a criação do Super-Homem alemão: de extermínio de deficientes físicos e mentais, e até de soldados alemães feridos em combate, a experimentos com crianças judias.

Sem dúvida, muito da estética nazista está presente em várias áreas da nossa sociedade do espetáculo, da publicidade à medicina, da organização dos ambientes de trabalho à segurança pública. Evidentemente que esses valores assumem formas mais sutis e diversificadas, vestem roupagens da época em que vivemos, à medida que se globalizam como valores, mas que não mudam em nada o seu princípio central: embelezamento e harmonia como higienização do corpo e saneamento social.

Não é por acaso que hoje a palavra "estética", para a grande maioria das pessoas perdeu sua forte associação com as artes em geral, e denota unicamente cuidados com a beleza e saúde do corpo, que não é senão uma corroboração de um pensamento de Hitler: "o maior princípio de beleza é a saúde". Penso que os meios de comunicação, sobretudo a publicidade e o cinema comercial, em função do seu alcance massificador, "democratizaram" o princípio estético nazista de beleza como higienização. Hoje, este ideal não se reduz apenas a um povo específico, mas se mundializa, está em cada propaganda de um shampoo ao prometer a beleza, prazer e a harmonia idílicas para quem o consumir, ou capacidades de Super-Homem, que beira à psicose, para quem consome determinado refrigerante, podendo com isso eliminar obstáculos e alterar a "realidade".

Da mesma maneira os programas de qualidade total e remuneração variável nas empresas, que ao obscurecer a relação de exploração entre capital e trabalho e fragmentar a consciência de classe do trabalhador, procuram convencer este a se tornar "parceiro", "sócio", "colaborador" da empresa, "membro" de um organismo maior cujo bom rendimento, e, portanto, boa saúde, depende da entrega total do trabalhador ao ideário da empresa. Hoje há psicólogos cuja assessoria dada a empresas é de detectar o tipo de psicopatologia que a empresa apresenta, e, logicamente, as causas de tal doença e as receitas para a sua cura.

Os programas de qualidade total lembram o programa do regime nazista de libertação do trabalhador pela limpeza corporal e do ambiente de trabalho, com o prognóstico louco de, como afirmou o Médico-chefe do regime, Gerhad Wagnes, "se a luta de classes morrer, ao menos o trabalho e a criatividade devem perder o estigma da sujeira. Se mostrarmos ao trabalhador como deve se lavar e o elevarmos ao nível da burguesia ele entenderá que não há porque lutar". A estética higienizante com a função de "libertar" a sociedade da luta de classes. Atualmente, é a publicidade e os manuais de integração das empresas vendendo a ilusão da inexistência da luta de classes. Vender a idéia de que se você pode consumir e faz parte de um partido-empresa você compõe "o corpo do povo" eleito, o organismo saudável, você é a massa eleita. E se você está desempregado e não pode consumir é porque a sua degenerescência (desatualização para as exigências da modernização e flexibilização do trabalho) o torna um entrave para o novo homem do mundo pós-fordista, globalizado, nanodigital. A sua ineficiência é sintoma da sua degenerescência.

Muitas são as evidências da perpetuação dos valores estéticos do nazismo em nossa sociedade, e eu poderia me estender com uma gama de exemplos , contudo não tenho fôlego nem aprofundamento de estudo para tanto. Apenas quis registrar em alguns linhas a atualidade de se pensar o legado de conteúdos ideológicos, e, portanto, um legado de mentalidade e materialidade, que a prapaganda nazista deixou para a sociedade do espetáculo. A aparente diversidade da aparente "sociedade pós-moderna" esconde uma uniformidade estética que é muito mais destrutiva do que comumente se pensa quando a preocupação incide somente sobre as perdas para a riqueza cultural humana provocadas pela massificação da cultura. A diversidade já era esperada pelo próprio Goebbels, ministro da propaganda nazista, para o qual a propaganda tinha função de apresentar "uma diversidade ostensiva que cancela a uniformidade real". Pensar o culto ao corpo perfeito no atual estágio da sociedade do espetáculo passa não somente por repensar constantemente o legado nazista na aparente heterogeneidade estética atual, mas fundamentalmente por refletir sobre  as implicações reais após o nazismo das relações entre higienização estética e limpeza étnica.

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