segunda-feira, 18 de junho de 2012

Se eu fosse um militante marxista heterodoxo, o que eu diria da heterodoxia acadêmica.

           É comum na academia, marxistas ou simpatizantes do marxismo argumentarem, quando fazemos qualquer crítica às teses centrais do marxismo ortodoxo (etapismo, economicismo, obrerismo, etc), que esse dogmatismo já foi há muito superado no marxismo, e que, durante o século XX, revisões profundas foram realizadas por pensadores das mais diversas nacionalidades.

Não há dúvida que na academia muitos dos dogmas do marxismo ortodoxo sofreram críticas sistemáticas, e, em muitos casos, se não foram abandonados por completo, passaram por profundas revisões. Mas entre revisões realizadas no âmbito da academia e a sua concretização em teorias e práticas abraçadas por sindicatos, partidos e movimentos sociais, existe uma distância considerável. A crítica à ortodoxia marxista, ortodoxia cuja expressão hegemônica ainda é o bolchevismo, permanece ainda atualíssima quando é feita a partir da perspectiva militante, e não nos departamentos de filosofia, sociologia, economia, ciência política, história, etc.  Em grande parte dos movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos combativos, a maioria das teses e metodologias que fundamentaram e fundamentam as interpretações da realidade e as práticas da militância ainda são teses e metodologias características da ortodoxia marxista.
Quanto ao modelo de organização, as organizações apresentam, na sua maioria, estruturas internas rigidamente verticalizadas, com centralização das decisões em uma pequena elite dirigente (centralismo democrático). Quanto às suas teses, ainda vigoram as concepções da precedência do econômico sobre o político e cultural (sendo os dois últimos supervenientes do primeiro), a centralidade do operário industrial como o sujeito revolucionário e projeções teleológicas de que a cada crise do capitalismo o seu fim se configura no horizonte, etc. Tais proposições são ainda marteladas em cursos de formação para a militância, e orientam os rumos das organizações e as práticas de muitos dos seus militantes, e, em especial, dos seus dirigentes.
Claro que nem todas as teses são defendidas em todas as organizações, mas, de modo geral, sempre há um conjunto delas hegemonizadas nos movimentos e partidos. Afora as teses, ainda o mais danoso às organizações é, de longe, o modelo organizacional que ainda vigora em quase todas elas, salvo poucas exceções. As estruturas verticalizadas têm sido, recorrentemente, as principais causas internas de burocratização dos movimentos, imprimindo, em parte, nas organizações sociais e políticas um descolamento entre base e direção que só contribui para a desmobilização e a inviabilização estrutural do protagonismo dos militantes da base, tão essencial para que as organizações não percam sua combatividade, força e perspectiva revolucionária.
Entretanto, apesar do modelo bolchevique de organização ser muito mais danoso às organizações de esquerda do que teses como as da centralidade do operariado industrial e de que, necessariamente, o capitalismo nos conduzirá, em virtude das suas contradições internas, a um modo de produção superior, ou seja, o socialismo, não se pode negligenciar a copresença recorrente nas organizações - ainda que não necessária - do modelo de organização verticalizada, das teses da vanguarda revolucionária (aquela que introduz de fora a consciência revolucionária na classe) e da centralidade do operariado industrial.
Um exemplo recente de uma disposição caricata dessa relação ocorreu no ato, chamado pelo PSTU, em solidariedade a Pinheirinho. O ato que saiu do centro da cidade de São José dos Campos e terminou na prefeitura, estava disposto da seguinte maneira: na frente, iam os dirigentes do partido (vanguarda iluminada); logo atrás, os militantes do partido (órgão que unifica a classe e a guia rumo à revolução). Em um terceiro plano, encontravam-se os militantes da central sindical do partido, a Conlutas, (organização dos trabalhadores submetida ao partido); depois os estudantes (dentre eles os futuros dirigentes em potencial). E, por fim, o resto dos movimentos sociais e independentes (massa amorfa que segue cegamente seus dirigentes e partido revolucionário, mera correia de transmissão do partido).  Entre cada setor compartimentado da “cosmovisão” bolchevique do PSTU, havia uma faixa impedindo o desarranjo da disposição que é dada, a priori, pela “teoria revolucionária” a cada setor.da classe A cada um a sua posição engessada previamente “na marcha histórica rumo ao socialismo”.
A imensa variedade de marxismos que a academia tem produzido nada ou quase nada influenciou, ate agora, as organizações sociais e políticas da esquerda marxista combativa. E se isso se deve em muito à própria estrutura das grandes instituições universitárias no capitalismo, orientadas principalmente para formar os filhos das classes dirigentes, uma parte importante da “culpa” reside no fato de que os intelectuais marxistas que reviram os dogmas da ortodoxia, em especial do bolchevismo, não eram e não são “intelectuais orgânicos”, ou seja, que dedicaram e dedicam o seu trabalho intelectual em auxiliar a classe trabalhadora organizada na sua luta contra o capital.
O bolchevismo, nas suas diversas expressões (leninismo, trotskismo, stalinismo, maoismo), ainda é a ideologia predominante nas organizações de esquerda tanto combativas quanto adeptas do jogo institucional burguês.  Com isso não quero dizer que não houve fora da academia, e sistematizadas teórica e praticamente no calor das lutas, perspectivas marxistas heterodoxas, que questionaram os postulados e métodos bolcheviques. Rosa Luxemburgo e os conselhistas são exemplos de alternativa ao bolchevismo. Tais correntes do marxismo, no entanto, nunca cresceram ao ponto de pôr em risco a hegemonia bolchevique na esquerda marxista durante todo o século XX até agora.
A força que o bolchevismo adquiriu internacionalmente a partir da derrota da revolução russo, tomada do poder pelos bolcheviques, aniquilação de qualquer oposição de esquerda, desmantelamento dos sovietes livres e conselhos de fábrica, resultando na consolidação do Estado soviético autoritário e imperialista que durou quase oito décadas, foi um dos fatores essenciais para o fracasso do marxismo “heterodoxo” presente nas lutas de massa.  Mas mesmo após duas décadas do fim do “socialismo real” e do controle dos partidos comunidas pelo Partido Comunista Russo, ainda assim o bolchevismo continua a ser a ideologia dominante nos setores organizados da classe trabalhadora. E esse quadro geral de dogmatismo teórico e prático na esquerda marxista não alterará nada se novas propostas e recuperação de antigas não sairem de dentro das organizações sociais e políticas, alimentando-se de práticas novas e antiautoritárias da própria classe, e engendrando metodologias de prática e análise capazes de se apresentarem como alternativas ao bolchevismo.
           Caso contrário, as teses e práticas bolcheviques continuarão a confeccionar o mais do mesmo, e a heterodoxia do marxismo permanecerá sendo gestada de intelectuais para intelectuais, sem que, em função do seu distanciamento do “mundo da vida”, faça o menor sentido como ferramenta que auxilie a classe trabalhadora na luta contra o Estado e o capital.     

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