Depois de 18 dias de protestos ininterruptos nas principais cidades do Egito, no dia 11 de fevereiro Mubarak caiu. A população egípcia deixa a sua marca na História ao nos lembrar, mais uma vez, que quando o desejo por mudança supera o medo imposto, a sublevação popular pode, em questão de dias, derrubar governos que há décadas se mantinham no poder pelo uso indiscriminado da força. Mas uma transformação social profunda que reflita da forma mais fiel possível as demandas evocadas nas ruas não se realiza com a simples queda de uma tirania.
As estruturas de um aparato de Estado profundamente repressor, e administrado por uma elite burocrática formada na sua maioria por setores oriundos do alto escalão das Forças Armadas do país, como é o caso do Egito, não cai, da noite para o dia, com a remoção do tirano. As formas que a transformação social no Egito assumirá nos próximos meses serão determinadas pelas lutas emergentes entre (1) as classes populares e as classes dominantes e (2) as lutas entre os setores no interior dessas classes dominantes.
É por isso que somente a autonomia das classes populares egípcias, a continuação da sua luta, com uma orientação independente, numa dinâmica participativa que se fortalece a cada nova conquista, será capaz de fazer com que suas demandas por justiça econômica, liberdade, participação política e reestruturação do aparato de Estado, não sejam canalizadas, num processo de cooptação, para uma orientação que termine em uma mera transformação política: a elite burocrática militar sede espaço para os outros setores oposicionistas da classe dominante, forma-se um governo de coalizão que tenta ao máximo equilibrar os antagonismos de interesse e manter a institucionalidade e algumas políticas populares são implementadas para conter a pressão popular.
É inegável que "a república mais imperfeita é mil vezes melhor que a monarquia [autarquia, regime militar, etc] mais esclarecida", e que ao menos "o regime democrático eleva as massas à vida pública", como destacou Bakunin. O que deve ser perguntado, contudo, é se uma possível democracia representativa no Egito, em que as elites políticas, dissidentes e constitutivas do antigo regime, alternam-se no poder por meio do voto, mantendo, mesmo que com reformas de cunho popular, uma estrutura que preserve ao máximo as relações de dominação e exploração na sociedade, poderá responder às principais demandas que têm levado as classes populares dos países árabes a ocupar as ruas, enfrentar e derrubar seus déspotas.
O dia seguinte
Na noite da queda de Mubarak, a TV de jornalismo árabe Aljazeera, in loco e ao vivo, transmitia para todo o mundo a euforia e comemoração dos manifestantes ao receberem, num pronunciamento do general e então ainda vice-presidente do Egito, a noticia de que Mubarak renunciava ao cargo. Após 30 anos de despotismo, com perseguição a qualquer voz dissidente ao regime e exclusão da população de qualquer participação política, os egípcios comemoravam a vitória da coragem, espírito incansável, solidariedade e apoio mútuo de homens e mulheres, dos mais diversos setores, mas predominantemente das classes populares e médias, sobre um regime que não mais conseguia governar sobre a simples força bruta. A pergunta dos jornalistas para as pessoas na Praça da Libertação (Tahrir Square) no Cairo, epicentro das manifestações, era: "O que virá depois?". Os entrevistados, tomados pelo sentimento de vitória e libertação, claro que não poderiam fazer analises e projeções naquele momento, e apenas faziam eco a um manifestante que dias antes declarara que "o que quer que aconteça, nada será o mesmo novamente".
Mas para que nada seja o mesmo novamente, e o mesmo significa aqui a permanência de velhas estruturas de poder, privilégio e repressão do regime de Mubarak, embora uma democracia representativa se consolide, muito tem que ser feito. E é ai que entra duas perguntas centrais: (1) qual será a participação das classes populares, principais responsáveis pela queda de Mubarak, na forma e nos caminhos que a transformação social tomará? (2) O quanto as classes permanecerão fortes e autônomas e ditarão a agenda política de um futuro governo eleito?
Aos próprios militares, alicerce e beneficiados diretos do regime de Mubarak, foi entregue, pelo ex-ditador, a responsabilidade de coordenar o processo de transição que, ao que parece, culminará com eleições em setembro. Até o momento, o Conselho Supremo das Forças Armadas, parte do antigo regime, desempenha o papel de garantidor do processo de democratização e interlocutor entre o poder das elites e as forças democráticas. O fato de os militares não confrontarem a população durante os 18 dias de sublevação popular deu a eles a imagem de "neutralidade" em face dos acontecimentos. Contudo, dado o seu papel de participantes do governo de Mubarak, a situação em que agora se encontram como setor das classes dominantes que estabelecerá o processo de "diálogo" com a pluralidade das forças políticas do país, a necessidade - aos olhos das elites do país - de restabelecer a ordem, e também a luta que desempenharão para que muito da sua influência e benefícios permaneçam (e isso inclui os militares), forçará que os militares tomem, a médio e curto prazo, decisões estratégicas. E essas decisões mostrarão o quanto a cúpula que forma o Conselho militar não somente compreende a situação na qual se encontra, mas também revelará a força política com que os militares sairão disso tudo.
Será que os militares acreditarão que poderão subjugar as massas com uma forma de paternalismo temporário, que acalma os ânimos, controla a transição, e assegura que, aos poucos, as linhas gerais das políticas do Estado continuem direcionadas segundo os interesses das elites locais e em acordo com as expectativas das potências ocidentais? A um bem curto prazo essa estratégia de contenção pode dar certo. Mas, dado a força com que as classes populares defenderam suas aspirações, e a continuação da pressão popular para que elas se consolidem, como os militares responderão? Não sendo possível que o direito às eleições acalme as revoltas populares, os militares poderão muito bem tentar retomar a posição de pólo central do aparato de Estado?
As medidas para a transformação
O que é certo é que as estruturas antigas do aparato estatal egípcio, caso permaneçam, ainda que abaladas, não comportarão o escopo das demandas populares, que, em virtude da sua radicalidade democrática, forçam, necessariamente, uma reestruturação que não cabe em uma transformação política apenas no âmbito da consolidação de um Parlamento cujos membros são eleitos pela população.
Para de fato se iniciar políticas que atendam às demandas populares - se essas demandas não forem cooptadas por lideranças carismáticas dos setores da elite num processo de transformar as aspirações em instrumentos de novos poderes políticos – grande parte das medidas abaixo terão que ser cumpridas a médio prazo.¹
1) a suspensão do estado de emergência, que já dura há 30 anos;
2) estabelecimento de uma junta civil de transição
3) uma nova Constituinte, com participação de forças democráticas populares;
4) legalização dos partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais;
5) julgamento de Mubarak;
6) reorganização do sistema judiciário;
7) prisão e condenação dos capangas do antigo regime;
8) liberdade de imprensa e opinião;
9) reconfiguração das forças policias, desmantelamento das forças policiais de Mubarak e tornar público as práticas operacinais dos serviços de inteligência da ditadura;
10) investigação judicial da corrupção de estado;
11) reconstrução da esfera econômica que contemple as demandas por justiça social, i.e, profunda redistribuição de renda;
12) libertação dos presos políticos, etc.
Uma reestruturação profunda do Estado egípcio passa pelo cumprimento de grande parte dessas medidas. É provável que grande parte das elites, principalmente as mais ligadas ao antigo regime - e entre elas, claro, os militares -juntarão suas forças políticas para inviabilizar a efetivação de muitas delas, e, não conseguindo, ao menos adiá-las ao máximo. Somente a organização popular, que não há dúvida que aprendeu e cresceu muito com a vitória de 11 de fevereiro, será capaz de forçar a implementação dessas medidas. Tudo ainda está por fazer. O ditador caiu, mas não levou todo o regime com ele. Quanto mais as classes populares conseguirem arrancar, no jogo de forças com as elites, medidas de cunho claramente popular, mais sua força determinará a direção das transformações sociais em curso no país. Não será um caminho fácil, todos sabemos. Nunca se deve subestimas a habilidade das classes dominantes "em se manter no poder em face da luta popular e interferência do imperialismo" (http://www.anarkismo.net/article/18742 ).
Da solidariedade
Muito dependerá, também, para a radicalização da luta democrática no Egito, do quanto as classes populares conseguirão superar diferenças étnicas, religiosas, de gênero, etc., tão agudas no país, e manter, para além de 11 de fevereiro, a unidade, apoio mútuo e solidariedade de classe tão dominantes nos dias que antecederam a queda de Mubarak. Um dos momentos emblemáticos dessa unidade, a meu ver, foi quando cristãos e mulçumanos, na praça da Libertação, rezaram juntos pela queda do regime. A continuação da solidariedade dos jovens ativistas nas redes sociais com as lutas e demandas dos trabalhadores, agora, mais do que nunca, será central também, pois é nas greves e continuação dos protestos dos trabalhadores que tem se mantido com mais fervor, tanto antes quanto depois da queda de Mubarak, as reivindicações que alimentaram os protestos em massa. Tem ocorrido, por exemplo, protestos e greves nos últimos dias na industria textíl, organizações de mídia, industrias de aço, correios, Ministério da Saúde, ferrovias, etc.
Vale lembrar que essa solidariedade entre jovens ativistas e os trabalhadores começou justamente com o apoio às greves de trabalhadores, em 2008, na cidade industrial de El-Mahalla El-Kudra. E é por causa da dimensão que atingiu a coordenação e articulação desse apoio mútuo, iniciado sob forte repressão, que sua continuação e fortalecimento será determinante na radicalização do processo democrática.
Imperativos externos
Somado aos grandes desafios internos postos às classes populares no Egito, não podemos jamais perder de vista que o Egito é central na dinâmica da geopolítica no Norte da África e Oriente Médio, sobretudo por causa do seu alinhamento com os Estados Unidos e Israel. Por essa razão, interferências externas, quer das potências ocidentais, quer dos países vizinhos, procurarão interferir decisivamente no futuro político e econômico do Egito. O porvir da profunda transformação social em curso no Egito - mas que iniciou na Tunísia e ameaça inspirar outros países na região - dependendo do seu grau de radicalização, terá consequências imprevisíveis na organização geopolítica da região.
Não é somente por motivos de estabilidade interna que, nesta segunda-feira, o Conselho dos militares novamente pediu para que os trabalhadores coloquem fim à onda de greves que se alastra pelo país, com o argumento de que os trabalhadores têm interrompido o andamento da economia. Os imperativos de por fim à instabilidade interna, e conduzir uma transição "pacífica" são exigências que autoridades estadunidenses, por exemplo, já vêm há dias pronunciando. No comunicado o Conselho diz que os "nobres egípcios vêem que essas greves, nesse momento delicado, levam a resultados negativos". Quem são esses "nobres egípcios" senão as elites políticas, industriais e financeiras do país, para as quais o que mais interessa agora é que o país tenha o mínimo de estabilidade e segurança para o livre curso das transações capitalistas. Por isso a pergunta: com o aumento de pressão interna de setores das classes dominantes, por um lado, e dos países vizinhos e potências ocidentais, por outro, as forças armadas continuarão evitando o uso da força, caso as greves e protestos continuem?
A realidade antes da ideologia
Os desafios que a sociedade egípcia está enfrentando, e que somente estão no seu começo, dado a sua complexidade, não permitem que os acontecimentos no país sejam observados com lentes ideológicas, que tentam simplificar a realidade para torná-la rapidamente compreensível. Estaríamos inclusive desrespeitando as classes populares do Egito se a revestíssemos, a priori, de uma missão que não sabemos se ela será capaz de cumprir. Por isso que usar, à revelia, o termo revolução para o que vem ocorrendo, presta mais um desserviço à transformação social no Egito, do que contribui para uma compreensão e apoio lúcido às classes populares de lá. Não confundamos nossas aspirações, vontades e anseios com a realidade, sempre mais complexa e irreduzível a qualquer análise por mais profunda que seja. A realidade deve ser mudada com a força de nossas aspirações, mas nunca explicada por elas.
Ao invés de fazer falsas imagens do que vem ocorrendo nos países árabes, todos aqueles revolucionários que se consideram internacionalistas, e que apóiam a luta de libertação, quer do jugo imperialista, quer de um regime despótico das próprias classes dominantes de um país, procuremos, se a intenção for de solidariedade, dentro de nossas limitações e com as forças que nos cabem, encontrar formas práticas de apoiar os povos árabes na sua dura luta por emancipação e de denunciar o imperialismo na região. Sem mascarar os imensos desafios que nossos irmãos e irmãs árabes estão tendo que enfrentar.
¹ Ver o artigo para Aljazeera Inglês de Adrian Crewe (http://english.aljazeera.net/indepth/opinion/2011/02/2011213134458448460.html ), de onde tirei algumas das medidas elencadas.
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