segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Assistam a esta série.

          Compartilho com os frequentadores do blog uma série recente do canal de TV Aljazeera em inglês. A série, com cada episódio de aproximadamente 20 minutos, mostra trabalhos manuais extremamente pesados, que ainda ocorrem em vários lugares do mundo, apesar do atual estágio tecnológico do capitalismo. Cada capítulo da séria inicia com a seguinte pergunta: "em nossa era tecnológica, o trabalho manual pesado está desaparecendo ou apenas se tornando invisível?" Com essa pergunta somos levados a uma mina de carvão na Ucrânia, onde trabalhadores autônomos continuam, manualmente, explorando a mina que foi abandonada desde o fim do comunismo no país; a trabalhadores na Indonésia que sobrevivem extraindo rochas de ácido sulfúrico de um vulcão na ilha de Java; a um porto no Paquistão para onde navios velhos são enviados para serem desmontados e vendidos como sucata. Com quase nada de ajuda de maquinário, os trabalhadores desmontam o navio inteiro apenas com um maçarico em mãos, etc. 
        Aos que assistirem à série, peço que a divulguem, pois séries como essa, que  confrontam  a fabricação da invisibilidade da exploração do trabalho humano na sua forma mais tradicional, devem ser assistidas pelo maior número possível de pessoas. 


 

  

    

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Solidariedade contra o golpismo na América Latina

            O pronunciamento imediato dos países membros da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) condenando a tentativa de golpe de Estado no Equador demonstra o comprometimento da maioria dos governos latino-americanos com a democracia e também sinaliza que existe solidariedade entre os Estados contra o golpismo na região . Mesmo que a correlação de forças no Equador não tivesse pendido a favor do governo de Rafael Corrêa, e eventualmente as forças armadas e a polícia tivessem concretizado o golpe, como ocorreu em Honduras, o posicionamento dos países vizinhos, que às pressas se reuniram na Argentina e logo enviaram uma comitiva de chanceleres à Quito como apoio ao governo, teria ainda assim sido de grande significação e deixaria as forças golpistas equatorianas isoladas.
             A importância central da solidariedade entre os Estados sul-americanos contra o golpismo e o imperialismo é que ela  impulsiona e fortalece a solidariedade entre os movimentos sociais e partidos de esquerda em todo a região contra o fantasma dos golpes civil-militares. O apoio externo aos movimentos sociais do país sob ameaça aumenta a combatividade desses movimentos e aprofunda a experiência democrática, uma vez que aproxima e integra as bases sociais responsáveis pelas transformações que vêm ocorrendo na última década na América Latina. Dos 4 golpes arquitetados nos últimos dez anos, apenas o em Honduras se concretizou, apesar da mobilização e resistência da sociedade hondurenha. Na Venezuela em 2002, não fossem milhares de pessoas nas ruas e em frente ao Palácio de MiraFlores exigindo o retorno de Chávez, certamente que o golpe teria ocorrido. Também em 2008 a resistência popular e seu apoio ao governo de Evo Morales na Bolívia foram fundamentais para que parte da elite boliviana não desestabilizasse o governo com usas ameaças separatistas. Do mesmo modo no Equador na última quinta-feira, quando houve mobilização social contra a tentativa de golpe então em curso.
          Cada vez mais o papel dos blocos regionais será de  importância central para evitar que governos eleitos democraticamente e comprometidos com amplas reformas sociais ou até mesmo com um projeto de socialismo democrático, como no caso da Venezuela e Bolívia, sejam desestabilizados, ao ponto de caírem,  por forças de direita internas em conluio com o imperialismo estadunidense. O fato da dificuldade de derrubar os atuais governos democráticos de esquerda na região mostra que já não é tão fácil arquitetar um golpe como em décadas anteriores, sem que os países vizinhos manifestem repúdio ao golpe e tomem conjuntamente algumas decisões estratégicas para conter a sua consolidação. Hoje os impactos de uma violação da legalidade democrática num país da América Latina logo se estendem para além das fronteiras da nação, e chamam a atenção da opinião pública, dos países membros dos blocos de integração regional e de órgãos internacionais. A atual correlação de forças, com a maioria dos países latino-americanos impulsionando uma maior unidade econômica entre si, e, como consequência, consolidando uma superação da tradicional submissão econômica e ideológica aos Estados Unidos e à sua intenção de consolidar o neoliberalismo aqui por meio de tratados unilaterais de livre-comércio norte-sul, evidencia cada vez mais que os países da região não aceitam mais o rótulo de quintal de Washington, e que, mesmo nos marcos do capitalismo, como no Brasil e Argentina, são capazes de, no cenário internacional, fazer valer os seus interesses como blocos integrados.
             Contudo, os EUA não aceitam que estão perdendo terreno na região, e junto com forças golpistas latino-americanas, as mesmas por traz da onda de golpes que ocorreram entre as décadas de 60, 70 e 80 do século passado e as únicas que se beneficiam de um alinhamento de submissão com Washington, tentam desestabilizar a região para, sobretudo, derrubar os países que têm mostrado ser possível, democraticamente, construir condições materiais para uma transformação social profunda cujo horizonte seja o socialismo. Quer acreditemos ou não que isso seja possível, o fato é que esses países têm enraivecido Washington, que não vem medindo esforços para financiar e apoiar a desestabilização dos seus governos. Sabe-se que a tentativa frustrada de golpe na Venezuela e o golpe em Honduras tiveram apoio estadunidense, quer por meio de seus serviços de inteligência, quer pela USAID (sigla em inglês para Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), que tem um histórico de financiamento de partidos e grupos dos países alvo que se opõem aos seus governos. Não é de se esperar cenário diferente no caso do Equador, onde setores da polícia e das forças armadas - os que tentaram dar o golpe - têm relações próximas com membros da embaixada norte-americana em Quito e com órgãos de inteligência estadunidenses. Quando Chávez diz que por traz das forças de direita nos países da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas) e das suas tentativas de golpe está os Estados Unidos, não é paranóia, e tampouco uma jogada política do governo venezuelano. A Venezuela é de fato o Estado sob mais ameaças retóricas e concretas de Washington. O país, que faz fronteira com a Colômbia - país em parte sob ocupação dos Estados Unidos - vem há anos sofrendo a infiltração em seu território de paramilitares financiados pelo governo Colombiano e pelos EUA, com o intuito de desestabilizar o governo Chávez e fazer da Venezuela a principal rota da internacionalização da droga produzida na Colômbia, fazendo o país passar por Estado que financia o narcotráfico. Com a  soberania venezuelana sob ameaça concreta, as preocupações de Chávez são no mínimo razoáveis.
              Por isso que quanto mais países progressistas houver na região maior serão as dificuldades de que o golpismo tome força novamente na América Latina. Sabemos que para os Estados Unidos a democracia só interessa em um país em sua área de influência se o governo desse país obedecer aos ditames de Washington. E que tão logo um governo eleito contesta seriamente essa submissão, o lema é: antes um regime autoritário que siga as ordens da Casa Branca. Tem sido assim desde a guerra fria e continua sendo até agora, basta atentar para os exemplos mais gritantes, que são as relações amigáveis dos EUA com ditaduras alinhadas no Oriente Médio. Para o imperialismo norte-americano na América Latina,  qualquer proximidade entre democracia e autonomia sempre será uma ameaça.
            Quanto mais forte a integração entre os países e os povos na América Latina maior serão as dificuldades de que o golpismo se torne a regra e não a exceção. Se Honduras nos assombra com o reaparecimento dos horrores do autoritarismo e terrorismo de Estado, que à revelia de resistência popular, provoca perseguições, torturas, assassinatos e desaparecimentos, a Venezuela e o Equador, em contrapartida, mostram para o imperialismo que não aceitaremos a repetição dos horrores de regimes ditatoriais conduzidos ao poder sob supervisão de administrações republicanas e democratas. O continuado papel imperialista dos Estados Unidos na região mesmo após o fim do bloco socialista apenas torna mais escancarado os objetivos do império, uma vez que o discurso da ameaça comunista em seu quintal já não existe mais. O que os Estados Unidos não querem é que os rumos políticos e econômicos nos países da região se afastem do clientelismo e alinhamento estrito com Washington.
           Assim, a cada governo progressista eleito ou reeleito na região acresce um peso a mais na correlação de forças para o lado da autonomia e do aprofundamento da democracia na América Latina. O repúdio do presidente Lula à tentativa de golpe no Equador e o papel significativa do Brasil nos últimos oito anos para o fortalecimento da integração regional e respeito à soberania dos seus vizinhos, revela que, no plano internacional, o governo petista se diferenciou em muito do governo anterior. Basta lembrar que umas das críticas de Alckmin - quando candidato à presidência em 2006 - à política externa do governo Lula  foi o fato de o Brasil não ter agido, segundo ele, duramente com a Bolívia em relação à crise do gás, quando o governo de Evo Morales nacionalizou os hidrocarbonetos. O governo brasileiro agiu como deveria agir, respeitando a soberania de um Estado vizinho e o seu direito de iniciar um projeto de desenvolvimento nacional para o qual os hidrocarbonetos têm papel central. Para Alckmin, o governo brasileiro deveria defender a qualquer custo os interesses das nossas empresas. Serra também criticou publicamente o apoio da embaixada brasileira ao presidente hondurenho deposto, quando o abrigou na embaixada, impedindo assim que ele tivesse sido capturado e assassinado pelos golpistas. E não é preciso imaginação para saber qual seria o posicionamento de um governo tucano em relação ao golpe de Estado no Equador.
           Em vista da atual conjuntura e do papel que o Estado brasileiro vem desempenhando na consolidação de uma maior integração regional,  a vitória do governo petista nas eleições, com todos os erros que nele podemos identificar, será, por isso, decisiva para  o fortalecimento da solidariedade entre os países latino-americanos, e para o impedimento de que o golpismo ganhe aval e, por isso, novamente força, na região.
             Fiquemos alerta, Honduras mostrou que a repetição do terrorismo de Estado é mais real do que aparentava ser.

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Algumas fontes:
1. http://www.brasildefato.com.br/node/2404;
2. http://www.zcommunications.org/coup-attempt-in-ecuador-by-eva-golinger;
3.http://www.telesurtv.net/noticias/secciones/nota/79253-NN/se-mantiene-estado-de-excepcion-en-ecuador-mientras-regresa-la-calma-tras-golpe/;
4.http://www.telesurtv.net/noticias/secciones/nota/79236-NN/chavez-rechaza-intento-de-golpe-de-estado-en-ecuador-y-responsabiliza-a-eeuu/;
5.http://www.telesurtv.net/noticias/secciones/nota/79269-NN/cancilleres-de-la-unasur-arriban-a-quito-para-ratificar-respaldo-a-la-democracia/ ;
6. http://www.telesurtv.net/noticias/contexto/2199/informe-confirmado-inteligencia-usa--penetro-a-fondo-la-policia-ecuatoriana/.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Iraque: ilusões do fim da invasão.

             A retirada das "tropas de combate" estadunidenses do Iraque, depois de 7 anos de uma invasão falaciosamente justificada pela administração Bush e que, em vez de democracia, levou para o povo iraquiano mais morte, estagnação econômica, sectarismo, conflito interno, etc., apesar ser vendida como o penúltimo passo para a retirada completa dos Estados Unidos do Iraque, a ser concluída em 2011, não condiz definitivamente com o que na realidade está ocorrendo. O contingente de 50.000 soldados "não-combatentes" que ainda permanece no Iraque, que segundo autoridades estadunidenses e iraquianas terá a função de "assessorar e assistir" as forças de segurança do país até o final do próximo ano, não é o que resta da presença norte-americana. O retorno das tropas abre passagem para a entrada de mais soldados de agências privadas de segurança e funcionários do Departamento de Estado, que permanecerão no país muito depois da retirada do último soldado das forças de coalizão, caso esta retirado de fato se conclua. 
             A conclusão, em 31 de agosto último, da retirada de 90.000 soldados - segunda etapa do acordo selado em 2008, no fim do governo de W. Bush - sinaliza o começo do novo papel que os EUA irão desempenhar no Iraque. De agora em diante é o Departamento de Estado, e não mais o Pentágono, que irá assumir as responsabilidades da presença norte-americana no país. E o departamento já iniciou negociações para a contratação em breve de mais 7.000 soldados privados, além de equipamentos como transportes blindados, helicópteros e aviões, etc., para "assessorar" o treinamento da polícia iraquiana. As guerras do Iraque e Afeganistão são as guerras da história contemporânea nas quais há a maior participação de empresas e contingentes privados de segurança. Em ambas tem havido casos recorrentes de abusos praticados (o assassinato de civis, por exemplo) por soldados funcionários dessas empresas, que em muitos casos são ex-soldados do exército norte-americanos, cujo novo trabalho, aliás mais lucrativo, é de serem mercenários.
           Tudo indica que a nova etapa da ocupação estadunidense do Iraque seja quase uma completa passagem de operações de segurança, inteligência e combate das mãos do Estado para o setor privado. Em poucas palavras, uma privatização da invasão. E muitos são os benefícios, para os Estados Unidos, dessa transição.
            O país ainda não se recuperou da pior crise econômica que tem enfrentado desde 1929, ainda sem previsão para ser completamente superada, e com um índice de desemprego de 10%. Na política externa, Obama aumentou a presença estadunidense no Afeganistão, estendendo a guerra para o Paquistão, aliás uma guerra sem previsões de vitória. Portanto, privatizar a invasão do Iraque significa diminuir os custos com uma guerra que já consumiu 700 bilhões de dólares do contribuinte norte-americano.
            Os EUA já conseguiram, senão completamente, ao menos em grande parte, consolidar os objetivos em função dos quais empreendeu a invasão: controle sobre o petróleo do país, expansão do poder estadunidense na região e estabelecimento de mais bases militares no Oriente Médio. Agora há, só no Iraque, 100 bases estadunidenses e dos países da coalizão. O objetivo de repartir o petróleo iraquiano entre as corporações norte-americanas já foi concluído logo nos primeiros anos da invasão. A presença militar estadunidense no Oriente Médio jamais foi tão grande quanto agora e as bases no Iraque e países vizinhos nunca tão numerosas e ativas. De maneira que os objetivos estratégicos e econômicos norte-americanos foram alcançados. 
               A passagem da responsabilidade pela segurança do país ao setor privado, primeiro, como já dito, diminui os custos do Estado e, em segundo lugar, diminui a pressão da sociedade americana sobre o governo em relação à guerra, dado que, uma vez privatizado o serviço de segurança, o governo estadunidense não precisa mais prestar tantas contas aos seus cidadãos sobre os rumos do Iraque. No que se refere ao Estado iraquiano, as empresas privadas contratadas não são submetidas a suas leis, uma vez que são contratadas pelo Departamento de Estado norte-americano. E como muitos dos donos dessas empresas são militares aposentados do alto escalão das forças armadas, alguns deles inclusive ligados à indústria bélica, o Estado e as corporações se confundem, e, sobre o sofrimento da população iraquiana, os lucros são repartidos.
               As condições sociais, políticas e econômicas do Iraque após 7 anos evidenciam o que muitos sabiam com base no que se pode esperar quando os Estados Unidos invadem um país prometendo democracia e liberdade. Afora o fato de o Iraque já estar há seis meses sem um governo, em função das eleições inconclusas para o Parlamento realizadas em março último, e de os integrantes do governo anterior, instalado pelos Estados Unidos, sofrerem ampla rejeição popular, o que mais causa sofrimento ao povo iraquiano é a ausência de infraestrutura básica e de políticas públicas mínimas.
             Após anos de embargo econômico e invasão, segundo dados das Nações Unidas, 80% da água iraquiana não é tratada e somente um quarto das casas estão ligadas a uma rede de esgoto pública. Num país em que 50% da população é menor de 19 anos, somente na capital, Bagdá, o índice de desemprego entre o jovens está em 30%. O Iraque possui a segunda maior taxa de mortalidade infantil entre os países da região, e mais de 300.000 iraquianos jovens nunca foram para escola. Estima-se que um quarto dos iraquianos vive em completa pobreza. Energia só é disponível algumas horas do dia e, embora seus poços jorrem petróleo, a escassez de combustível é frequente. Sabe-se muito bem para onde eles vão.
             O atual governo iraquiano depende dos Estados Unidos para a sua sobrevivência, e não é de se estranhar que funcionários do alto escalão e militares iraquianos temem a retirada das tropas estadunidenses e sustentem que as forças do país somente estarão prontas para atuar por conta própria em 2020. A população e os grupos insurgentes jamais aceitarão um regime submetido aos ditames de Washington, e cujos membros estão muito mais preocupados em se manter no poder e se beneficiar financeiramente da parceria com o invasor do que melhorar as condições de vida da população. As lideranças governamentais temem que a saída do EUA resulte no seu fim. Por isso veem com bons olhos o serviço prestado por soldados mercenários, um dos quais será o de proteger os membros do Parlamento.
             Segundo dados oficiais do governo norte-americano e de organizações internacionais, em 7 anos foram mortos por consequência direta da guerra 100.000 iraquianos e 4.4000 soldados estadunidenses. Estima-se que aproximadamente 4.000.000 de iraquianos foram deslocados e 2.000.000 tenham deixado o país. Contudo, os números são muito maiores. A presença estadunidense no Iraque remonta a 1991, guerra empreendida por Bush pai, e desde então os Estados Unidos jamais deixaram de bombardear o país e conseguir que o Conselho de Segurança da ONU aprove sanções atrás de sanções. Como decorrência de 20 anos de invasões, guerras e sanções o número de iraquianos mortos ultrapassa de longe 1.000.000.
             Sabemos que os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque jamais serão julgados, muito menos os seus principais arquitetos, Bush pai e Bush filho. Embora números sejam importantes para que a opinião pública tome certa dimensão dos horrores pelos quais gerações de iraquianos têm passado com a ocupação estadunidense, eles estão muito longe de fazer um pouco de justiça que seja ao sofrimento do povo iraquiano. A morte pode ser contabilizada, mas não existem dados e cálculos que meçam o medo, o desamparo e a falta de esperança que tomam conta de um povo submetido a um sofrimento forçado e sem perspectiva de término.
             Os Estados Unidos não só deixam a responsabilidade da "segurança" do país para terceiros, mas também deixam que as funções humanitárias fiquem a cargo de órgãos das Nações Unidas e ONGs. "Terminada" a guerra, já aumentam os “porta-vozes internacionais” dos direitos humanos prometendo realizar um trabalho conjunto com o governo local e a sociedade com o objetivo de erradicar a pobreza, a fome, a mortalidade infantil, etc. Este filme já vimos várias vezes: privatização, assessorada pelas Nações Unidas, da "ajuda humanitária". O que significa que muita gente ainda vai lucrar com a filantropia no Iraque.
             O envolvimento dos Estados Unidos no Iraque está muito longe de ter um fim. O general Ali Ghaidan, comandante em solo das forças iraquianas afirmou em entrevista que se precisarem de ajuda para manter "a segurança" a receberão dos Estados Unidos. E manter "a segurança" aqui significa, de forma velada, o que o presidente Barack Obama disse abertamente em pronunciamento para a nação estadunidense quando da retirada das tropas: "há ainda muito trabalho por fazer para garantir que o Iraque seja um efetivo parceiro nosso." Portanto, se os interesses de Washington forem ameaçados, tropas estadunidenses estarão prontas para atender os seus parceiros.
             Os rumos internos da vida político-social do Iraque a partir do próximo ano irão dizer o quanto de força os Estados Unidos estarão dispostos a empregar para manter a estabilidade, na região, dos seus interesses e dos negócios das suas corporações.
             

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A ditadura e o empresariado nacional.

          Pouco ainda se sabe e se fala, por razões bem óbvias, da ligação do grande empresariado nacional com o regime militar. Contudo, é um fato real que o golpe de 1964 foi um golpe civil-militar, com forte suporte financeiro das elites industriais do país. Muitos empresários não somente apoiaram o golpe, mas também financiaram com grandes somas de dinheiro a repressão e a tortura. O caso mais conhecido é o da financiamento, por empresas paulistas, da Operação Bandeirantes (OBAN), criada em 1969 pelas forças armadas, em conjunto com as polícias civil e militar, para enfrentar a crescente resistência ao regime.
         A partir da implantação da OBAN, a ditadura aumentou, de forma sistemática e coordenada, a repressão e a tortura, causando a morte de várias pessoas que resistiam ao regime por meios armados ou não. Não somente dinheiro do empresariado nacional foi utilizado para aparelhar a OBAN, mas também de empresas multinacionais, como as automobilísticas FORD e General Motors. O temor do empresariado às possíveis reformas sociais prometidas pelo governo Goulart e apoiadas pela mobilização popular, na época vistas pelo próprio empresariado como “sindicalização do governo”, foi o fator central na articulação civil-militar do golpe. No decorrer dos anos de ditadura, tanto empresas nacionais quanto internacionais se beneficiaram da política econômica de "desenvolvimento" do regime. Os laços entre os generais e parte considerável do grande empresariado, sobretudo nos anos mais violentos do regime, eram tão grandes, que até o Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974 (nos governos Costa e Silva e Médici), Delfim Neto, foi muitas vezes encarregado de lembrar o empresariado da importância do seu apoio financeiro à repressão.
         O empresariado nacional financiou fortemente o golpe e a tortura. De maneira que pensar nos 20 anos de total repressão aos direitos civis e políticos, sistemáticas prisões, torturas, assassinatos, etc., como duas décadas de um regime apenas militar, sem uma participação deliberada de parte da burguesia, quando não inocente, é querer simplificar os fatos da nossa história política recente e forjar uma narrativa que exime de responsabilidade direta arquitetos centrais do golpe.
         Se nem sequer no Brasil ainda se tem acesso público aos documentos das forças armadas no período, e tampouco um único torturado foi punido, imaginem quão distantes estão de terem que prestar contas à sociedade empresários e empresas que financiaram o regime, muitos dois quais ainda em atividade e influenciando os rumos políticos e econômicos do país. Se muitos dos torturadores ainda não têm nome nem rosto, quanto menos esses empresários, que equiparam a tortura, mas não sujaram suas mãos com sangue.
         Os ataques das elites dirigentes ao 3 Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), produto de ampla discussão do Estado com a sociedade civil organizada e movimentos sociais, que propõe a criação de um comissão para averiguar os crimes cometidos pelo regime, e tornar muito do que está encoberto público, tem suas razões. E elas são nítidas. Nomes aparecerão, e personagens e empresas influentes contarão em alguma lista.
          As elites brasileiras vão muito bem com a desmemória coletiva a respeito dos anos de chumbo, já que a anistia concedeu a liberdade de muitos continuarem impunes e influenciando os rumos do país. Ainda temos uma longa caminhada na luta contra o esquecimento deliberado que as elites, junto com os órgãos de mídia que elas mesmas controlam, alguns dos quais existem desde o regime, querem perpetuar. Um esquecimento que se traduz em impunidade e, por consequência, em repetição, com uma máscara democrática, de velhos hábitos. O silêncio imposto sempre foi uma grande arma das elites. E hoje a desinformação produzida pela mídia oligárquica, travestida de porta-voz do direito de voz, está comprometida com esse apagamento e distorção do que foi o regime e como ele foi arquitetado. Não é por coincidência que para a Folha de São Paulo a ditadura militar tenha parecido tão branda. O mesmo jornal emprestava seus carros para a OBAN usar como disfarce nas suas operações de captura e assassinato de membros da resistência.
         A sociedade civil organizada e os movimentos sociais, todavia, cada vez mais têm demonstrado que querem ver os crimes da ditadura averiguados pelo Estado, os nomes dos torturadores e seus apadrinhadores publicados e a realização de seus julgamentos . Está muito claro o forte conteúdo de classe nessa oposição das elites a que se mexa no passado. E não tenham dúvidas de que quanto maior for a pressão da sociedade para que os  responsaveis diretos pela tortura não fiquem impunes, maior será a contraofensiva das elites, pois o que está em jogo não é somente a memória, mas também as consequências da verdade tornada pública.
       Por isso que se a sociedade brasileira conseguir que se torne público e que se punam os crimes da ditadura, será uma prova concreta da força da sociedade civil organizada no Brasil atual, e um prenúncio de novas conquistas que estarão por vir.

 
  

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Após o Iraque, só falta o Irã.

           A quarta rodada de sanções contra o Irã aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 9 de junho último, embora não tenha tido o impacto econômico que Washington desejava, nem por isso foi insignificante, como muitos analistas a definiram. A última resolução reafirma e amplia o escopo de sanções já aprovadas nas três resoluções anteriores. A resolução prevê punições a entidades estrangeiras que venham a vender petróleo refinado ao Irã, ou auxiliar a sua capacidade doméstica de refinamento. O que é uma medida significativa, dado que a maioria do petróleo refinado do Irã, embora o país possua a terceira maior reserva de petróleo do mundo, é importado de empresas estrangeiras. A República Islâmica não possui a tecnologia necessária para o refinamento do seu petróleo. Países estão proibidos também de permitir que o Irã invista em suas plantas de enriquecimento nuclear, minas de urânio e outras tecnologias nucleares relacionadas e de venderem equipamento militar pesado para o país, como tanques, aviões, sistemas de mísseis, etc. Outro alvo de impacto das resoluções é sobre negócios e transações financeiras feitas pelo corpo da Guarda Revolucionária Islâmica, cujos membros possuem várias empresas no setor de energia. Aproximadamente 40 indivíduos estão banidos de viajar e estão com suas contas no exterior congeladas. A resolução também exige que países que mantém laços econômicos com o Irã inspecionem navios e aviões que tenham o Irã por destino ou que dele partam, caso suspeitem de que cargas proibidas estejam a bordo. 40 empresas estão na lista negra, o Banco Central Iraniano foi mencionado, seguido de um pedido para que os países “exercitem vigilância” ao negociar com ele, fato que sem dúvida dá bases legais para, num futuro imediato, estrangular as transações financeiras entre o Banco Central Iraniano e os bancos centrais dos outros países.
           Embora Pequim, como parceiro comercial do Irã e responsável por grandes obras de infraestrutura no país, como o metro de Teerã, tenha em certa medida frustrado as intenções de Washington de aprovar uma resolução final mais dura, o seu voto a favor no Conselho de Segurança, assim como o da Rússia, principal exportador de equipamento militar para o Irã, mostra que ao menos até agora ambos os países com poder de veto não estão dispostos a se contraporem aos Estados Unidos em relação aos seus objetivos na região.
       Mas a questão central do caso Irã é como novamente está se fabricando, como no caso do Iraque, a mentira de uma suposta ameaça militar. Toda a propaganda de que o Irã seria uma ameaça à estabilidade na região e estaria enriquecendo urânio com o propósito de desenvolver armas de destruição em massa é no mínimo ridícula. Mais um  mecanismo utilizado pelo governo estadunidense e sua mídia corporativa para desinformar deliberadamente a sua população, e forjar uma justificativa civilizatória para a invasão, traduzida nas palavras de Robert Gates, atual Secretário de Defesa dos Estados Unidos, por "fazer os iranianos entenderem quais são os seus melhores interesses”.
          O Irã é um dos países na região com o menor orçamento militar, 7 bilhões de dólares ao ano. Israel investe anualmente 12 bilhões de dólares e a Arábia Saudita 25 bilhões. O Irã está longe de ser uma força militar na região. O país nunca realizou incursões militares além do seu território e o seu poder atual é gerado muito mais pela condição geopolítica do Oriente Médio , do que por uma postura do próprio Irã. As medidas iranianas são claramente defensivas. Ninguém deseja que o Irã desenvolva armas nucleares, o que ele parece estar muito longe de conseguir, mas uma coisa é certa, com a forte presença militar  dos Estados Unidos e das forças de coalizão em países que fazem fronteira com o Irã - o Iraque a oeste e o Afeganistão a leste - e vendo a sua soberânia ameaçada,  parece que a única alternativa que resta ao Irã, para impedir uma invasão futura dos país, é o desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares.
         Washington está dando rigorosamente os mesmos passos que antecederam a invasão do Iraque. Com o propósito de forçar uma instabilidade interna no Irã, primeiro forja a propaganda de demonização do país, que vem se intensificando desde a administração Bush. Em seguida, empreende uma guerra econômica mediante a aprovação de resoluções no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com o propósito claro de estrangular economicamente o país. E, por fim, a invasão.
         Nunca é demais lembrar que o Oriente Médio é a preocupação central do governo estadunidense no que se refere a sua política externa e aos seus interesses econômicos. As três maiores reservas de petróleo estão na Arábia Saudita, Iraque e Irã, respectivamente.
          A Arábia Saudita, país mais anti-democrático na região, governado exclusivamente por uma família real, sempre foi um grande aliado de Washington, e é o regime ditatorial na região com o qual os Estados Unidos e suas companhias de petróleo mantém os negócios e parcerias mais consolidados. Já o Iraque, sob a ditadura de Saddam, foi por muito tempo um parceiro dos Estados Unidos, e com o apoio de Washington invadiu o Irã provocando uma guerra de quase uma década, que resultou na morte de aproximadamente 1 milhão de pessoas. Saddam usou até mesmo armas químicas contra populações civis no conflito. Quando Washington viu os seus interesses dificultados por Saddam, invadiu o país, e em quatro anos privatizou o petróleo iraquiano distribuindo-o entre suas corporações. Por meio da criação de uma lei chamada New Oil Law (Nova Lei do Petróleo), aprovada por um governo formado pelos Estados Unidos, o Iraque fechou contratos com as empresas estadunidenses, que repartiram entre si grande parte do bolo. Apesar da catástrofe humanitária, milhares de iraquianos mortos em decorrência de sanções e 7 anos de invasão, e 4.2 milhões de pessoas deslocadas pela guerra até 2007 (Refugies International, August 2007), a invasão tem se revelado um empreendimento altamente lucrativo para as companhias de petróleo estadunidenses, e geopoliticamente importante para o governo norte-americano. Ninguém tem dúvida de que controlar as principais fontes de petróleo do mundo garante um poder econômico sobre os países cuja economia depende fundamentalmente da exportação de petróleo e sobre países que precisam importar todo o seu petróleo.
           Se a questão fosse a ameaça militar, certamente que o problema central seria Israel, único país no Oriente Médio que possui armas nucleares, e principal aliado de Washington na região. Israel, embora possua armas de destruição em massa, não é signatário do Tratado Internacional de Não-proliferação de Armas Nucleares, e não permite qualquer inspeção do seu território por órgãos internacionais. Tanto Israel, quanto Índia e Paquistão, outras duas potências nucleares não signatárias, desenvolveram armas nucleares com transferência de tecnologia estadunidense.
          Talvez a evidência, para os que ainda preferem a propaganda do establishment, mais clara de que Washington tem outros interesses em relação ao Irã, foi o fato de os Estados Unidos desconsiderarem o acordo diplomático feito entre Brasil, Turquia e Irã, segundo o qual este se comprometeria a enviar parte do seu urânio não enriquecido para a Turquia e receber uma quantidade de urânia enriquecido para ser aplicado em tecnologia médica. Obama se opôs a esse acordo com o argumento de que ele já não contemplava o que era preciso ser feito, quando o próprio acordo foi proposto pelo governo estadunidense e considerado de grande importância numa carta enviada de Obama para Lula dias antes de iniciarem as reuniões em Teerã entre os três países.
         Historicamente, Washington desempenhou um papel central de desestabilização política e econômica do Irã. Em 1953, um governo laico, parlamentar iraniano eleito democraticamente foi deposto por um golpe arquitetado pelos Estados Unidos e a Inglaterra, e no lugar foi posto o governo tirano e clientelista do Xá, que ficou no poder até 1979, quando derrubado pelo levante popular que ficou conhecido por Revolução Islâmica.
          Motivo do golpe anglo-estadunidense: o governo iraniano havia nacionalizado o seu petróleo, então controlado por empresas britânicas e estadunidenses. Desde o fim da segundo guerra os Estados Unidos tem tido um papel determinante nos rearranjos geopolíticos da região, contribuído para a instabilidade na região e o fortalecimento de governos autoritários e de orientação fundamentalista. Independentemente da questão política interna do Irã, se seu atual governo viola direitos humanos e frauda eleições, “profana” Israel, e enriquece urânio com fins militares, essas não são as razões da guerra, até o momento, propagandística e econômica, iniciada na administração Bush, e aprofundada com Obama, contra o Irã. O que estamos a ver são os primeiros passos em direção a mais uma futura invasão. É quase certo que se os Estados Unidos não conseguirem desestabilizar o Irão ao ponto de provocar a queda do atual regime e a ascensão de um governo que não provoque a “instabilidade na região”, que, como Noam Chomsky muito bem observou, significa um governo que obedeça incondicionalmente às ordens de Washington, a invasão será inevitável.
       Se nem um possível veto no Conselho de Segurança pode parar os Estados Unidos quando os seus interesses e de suas corporações estão em jogo no Oriente Médio - basta lembrar como Washington passou por cima do Conselho de Seguranças no caso do Iraque - somente mesmo um Irã nuclear para salvaguardar a sua soberania. Contudo, o país parece estar ainda longe de tal capacidade. A situação atual no Oriente Médio, já bastante tensa, tente a se agravar nos próximos anos. Resta saber se os Estados Unidos estará realmente disposto a arcar com o ônus de mais uma guerra, quando ainda atolado em duas há aproximadamente uma década. Creio que sim, afinal de contas para Washington a guerra sempre parece trazer muito mais lucro e poder do que gastos.

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Algumas Fontes:

* The Iranian Threat, by Noam Chomsky http://www.zcommunications.org/the-iranian-threat-by-noam-chomsky-1;
*  Quarta Resolução de sanções contra o Irã http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N10/396/79/PDF/N1039679.pdf?OpenElement  ;
* Iran is not the problem, documentário realizado por ativistas estadunidenses http://freedocumentaries.org/teatro.php?filmID=305&lan=en&size=big ;
* Entrevista com o Secretário de Defesa do Governo dos Estados Unidos, Robert Gates: http://english.aljazeera.net/programmes/frostovertheworld/2010/06/201061091243602584.html ;

sábado, 26 de junho de 2010

Colômbia: novo presidente, mesmo governo.

         A vitória na eleição presidencial colombiana de Juan Manuel Santos, ex-ministro da defesa do governo Uribe, confirma o já esperado: a continuação, por mais quatro anos, das políticas do atual regime. Embora Santos tenha sido eleito com a esmagadora maioria dos votos, 70%, contra 27% do segundo colocado, o candidato pelo Partido Verde, Antanas Mockus, duas vezes prefeito de Bogotá, esses números são apenas parte da história. O outro lado é que 60% dos colombianos não foram às urnas e aproximadamente quinhentos mil votaram em branco. Ocorreram também relatos de que populações pobres de deslocados internos foram induzidas a votar para Santos sob ameaça de perderem os poucos auxílios sociais concedidos pelo governo Uribe.
       O que mostra a descrença de parte significativa da população em relação à situação política atual do país. Apesar de pesquisas de voto, antes do primeiro turno, terem apontado para um quase empate técnico entre Santos e Mockus, os resultados já do primeiro turno revelaram a falsidade de tais pesquisas. Gustavo Petro (PDA), candidato pelo Polo Democrático Alternativo, que ocupa 7,62% das cadeiras no Congresso colombiano, afirmou, após à vitória de Santos, que o establishment de Bogotá manipulou as pesquisas de opinião, apresentando o candidato do Partido Verde como próximo de Santos na pesquisa, de maneira a fazer com que aparentasse haver legitimidade em uma eleição que muitos cidadãos colombianos já davam como desde o começo definida, como as abstenções e votos nulos sugerem.
       Santos, quando ministro da defesa, esteve à frente da principal agenda dos oito anos do governo Uribe: a postura de solução unicamente militar, sob forte apoio financeiro dos Estados Unidos, para os conflitos da região. O futuro presidente, cuja família, junto com grupos espanhóis, controla parte da mídia corporativa do país, foi eleito à sombra de Uribe. Na verdade, Uribe só não foi candidato novamente, porque a Suprema Corte colombiana vetou uma proposta do governo de criação de uma emenda na Constituição que autorizasse que Uribe concorresse pela terceira vez. Como no Brasil, a constituição colombiana apenas permite dois mandatos consecutivos.
       O orgulho de Santos ao ver seu país ser descrito como Israel da América Latina, descrição sem o mínimo de fundamento na realidade, evidencia as suas crenças em relação ao papel regional e internacional da Colômbia como principal aliado dos Estados Unidos na América do Sul, a sua disposição de continuar comprometido com os EUA e levar a cabo a postura intransigente do governo Uribe na região, como quando realizou incursões militares em solo equatoriano, e mais recentemente o acordo com Washington, sem consultar os países vizinhos, que autoriza que os EUA use 7 bases militares na Colômbia.
      Uribe deixa para o seu fiel sucessor um país com o maior índice de homicídios do mundo, maiores índices de violação de direitos humanos no continente, 7 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, o segundo maior número de deslocados internos (mais de 4 milhões de seres humanos, metade dos quais apenas no governo Uribe, expulsos de suas terras por causa de lutas econômicas e políticas pelo controle de regiões,  fato agravado ainda mais pelas fumigações, que, sob o pretexto do governo de combater as plantações de coca, envenenaram terras de vários camponeses, inviabilizando o seu cultivo), atrás apenas do Sudão, 13% de desemprego, 58% da força de trabalho no mercado informal, 5.000 civis assassinados nos últimos anos, grande parte por forças militares do governo, para aumentar os números do governo no desempenho da suposta guerra contra o narcotráfico e o terrorismo, etc.
      A atual situação colombiana, com a duplicação do número de milhares de indígenas, afro-descendentes e campesinos expulsos de suas terras, 40 sindicalistas assassinados somente no ano passado, e neste ano já 31, está intimamente ligada ao Plano Colômbia, acordo de ajuda militar dos EUA à Colômbia como parte da "guerra" contra as drogas. Embora desde a década de 1990 a Colômbia tem sido o maior recipiente de ajuda e treinamento militar dos Estados Unidos, com o Plano Colômbia a ajuda em dinheiro aumentou consideravelmente. Como início do plano, a Colômbia recebeu, em 2000, 3.5 bilhões de dólares para usar no “combate” às drogas. Desde então, a cada ano, o país recebe de Washington uma quantia crescente por ano em ajuda militar. Mais detalhadamente, em 2002 foram 371.74 milhões, em 2003 605.1 milhões, em 2005 574,15 milhões, etc.
     Vendido como um plano de combate ao narcotráfico, e após 11 de setembro, como também combate ao terrorismo, o Plano Colômbia é um componente de um objetivo maior de ampliar a presença militar estadunidense na região andina, de modo a garantir a proteção de recursos naturais de interesse dos Estados Unidos. As drogas e o terrorismo não são senão um meio de justificar a presença militar estadunidense na região. Ora, a Colômbia é o maior exportador de cocaína do mundo, e o Afeganistão o maior de heroína, e ambos estão sob presença militar há um bom tempo dos Estados Unidos, maior consumidor de drogas ilícitas do mundo. E nem por isso esses países deixaram de ser os maiores exportadores dessas drogas.
     Somente em 2004 o número de colombianos deslocados pela violência foi de 280.000 pessoas. A retirada de camponeses das suas terras, que já não são muitas - pois na Colômbia 53% das terras estão em posse de 1.8 da população - tem por finalidade outras que não contra-atacar o narcotráfico. A fumigação de terras em zonas rurais, sobretudo no sul da Colômbia - região historicamente negligenciada e esquecida pelo poder central - feita por empresas de defesa privadas contratadas pelo Pentágono, tem destruído dezenas de hectares de plantações de alimentos, contaminando o solo, a água e o ar na região. As fumigações destroem a diversidade natural, tornando inviável a agricultura na região, expulsando assim os camponeses e preparando o terreno para expropriação dos recursos naturais por parte das transnacionais estadunidenses.
       A privatização das operações militares na Colômbia, que vai desde serviços de inteligência e logística, aviões que fumigam com veneno as áreas rurais, até equipes de resgate, também faz parte de uma prática do governo estadunidense em todas as regiões em que está presente militarmente, principalmente Iraque e Afeganistão. A conseqüência disso é que não há um controle do congresso dos EUA sobre as atividades dessas empresas e a transparência das suas ações é quase zero, pois podem esconder informações sob o pretexto de preservar preocupações de ordem privada, etc. Com isso, a pressão da sociedade civil em relação às atrocidades cometidas que vazam para a opinião pública é diminuída, pois sempre se pode culpar a empresa contratada pelos erros, e não as forças armadas. A Dycorp Company, Northrop Grumman, Eagle Aviation, são apenas algumas das empresas atuando atualmente na Colômbia.
     Os grupos paramilitares, com os quais já há uma longa história de colaboração por parte das forças de segurança governamentais (inclusive já vistos por muitos colombianos como o braço ilegal armado do Estado), assim como os grupos guerrilheiros, têm sido, em certa medida, um obstáculo à implementação dos acordos de livre comércio entre USA e Colômbia. Muitas empresas estadunidenses têm que pagar dinheiro a grupos militares ilegais para receber proteção.
      A presença militar, sob o pretexto da guerra contra o terror e o narcotráfico, é um meio de assegurar o aprofundamento do projeto de livre mercado na região, que consiste na expropriação transnacional dos recursos naturais e a redução dos colombianos a meros consumidores de produtos estadunidenses subsidiados. Que é o mesmo que tem ocorrido com todos os países na América Latina que implementaram políticas econômicas de livre comércio com os Estados Unidos. Basta ver o México, que após o NAFTA, de grande produtor de milho, principal produto da dieta da população, sobretudo a do campo, virou importador de milho subsidiado estadunidense, acabando com o mercado interno de milho e lançando vários camponeses na miséria e na fome. O mesmo com o Haiti, que, durante a administração Clinton, passou a importar todo seu arroz dos Estados Unidos, causando a falência de vários agricultores haitianos cujo sustento vinha da plantação de arroz. Assim, em geral o que ocorre é que grande parte dessa população camponesa empobrecida migra para os grandes centros aumentando a população favelizada desses países.
     A circulação descontrolada de capital nesses países, que é o feito, claro, da implementação de políticas econômicas neoliberais - políticas que têm, de algum modo, a sua contraparte militar, na Colômbia sendo mais forte e sistemática do que em outros países da região -, tem acelerado a expropriação de recursos naturais, o que aumenta a ambição pelas terras dos indígenas, afro-descendentes e camponeses em geral.
     Uma outra questão, talvez a pior, que tem se intensificado desde o começo da implementação do neoliberalismo na Colômbia, é a perseguição e o assassinato de integrantes de movimentos sociais que tentam abrir espaço para uma oposição não violenta. Os sindicatos, que são uma das bases da organização social com mais poder de pressionar o estado e reivindicar direitos sociais, têm sido atacados por todos os lados, não somente pelo governo. Os paramilitares acusam vários líderes sindicais de ligação com as FARC, e, em contrapartida, as FARC os acusam de estarem com o governo por não apoiarem a luta armada.
     A perseguição sistemática que, desde 1986, ano da criação da Central Única dos Trabalhadores Colombianos, resultou no assassinato de mais de 4.000 sindicalistas, levou não somente ao enfraquecimento, evidentemente, das organizações sindicais na Colômbia, mas também de qualquer movimento social organizado. O assassinato de pessoas que tentam agir democraticamente dentro dos espaços da democracia liberal alastra o medo, e afasta a população da arena política, sem a qual não existe exercício da democracia. Não há democracia quando é permitido que se fale, mas dependendo do que se fala você é assassinado ao virar as costas.
     O acordo, sem consultar os países da região, para a transformação de bases militares colombianas em bases militares estadunidenses, é a expressão de mais um aprofundamento e expansão do Plano Colômbia para toda a região andina. Os oito anos de governo Uribe, certamente o governo mais clientelista pelo menos na história contemporânea da Colômbia, não somente foi extremamente prejudicial para a população colombiana, como também para segurança na região. Seria muita inocência acreditar que a propaganda de combate ao narcotráfico é verdadeira, quando ela parte de um governo cujo próprio presidente, hoje apresentado pelo governo estadunidense como parceiro chave na guerra contra as drogas, foi acusado de ter tido ligações com o narcotráfico. E o que é mais agravante: essa acusação foi feita em um documento secreto de 1991, da Agencia de Defesa dos Estados Unidos. O documento foi tornado público somente em 2004, pela The National Security Archive (Arquivo de Segurança Nacional), um instituto de pesquisa não governamental, localizado na Universidade George Washington, que coleta e torna de domínio público documentos liberados em decorrência do Ato de Liberdade de Informação. Nele Uribe é acusado de ligação com o cartel de Medellín.
       Está claro que o Plano Colômbia tem se mostrado uma estratégia de guerra sob auspício dos Estados Unidos, e como tal, não respeita acordos sob as cúpulas das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos. As bases colocarão em risco a soberania dos estados vizinhos, num momento em que muitos países da América Latina buscam o estabelecimento de uma maior unidade comercial e cultural na região, menos dependência e mais diversificação nas parcerias econômicas.
       Os quatro próximos anos de continuação das mesmas políticas serão catastróficos tanto para a situação doméstica da Colômbia quanto para a região. Apesar de um futuro próximo escuro para a Colômbia, ainda há, no país, muitas comunidades em resistência, movimentos sociais e organizações dispostas a buscar uma saída política para os problemas do país. Mas fica a pergunta: em face da violência que esses movimentos têm sofrido por parte do Estado, dos grupos paramilitares e guerrilheiros, será possível que eles cresçam ao ponto de congregarem forças para uma nova saída política para a Colômbia? Só a sociedade colombiana será capaz de nos dizer isso, mas, ao menos para os quatro próximos anos, não poderemos deixar de ser pessimistas sobre os prováveis desdobramentos da continuação das políticas arquitetadas pela administração Uribe.

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Algumas Fontes:
 
1. Documento de 1991 da Agência de Defesa dos Estados Unidos, no qual Uribe é acusado de relação com o narcotráfico: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB131/index.htm ;
2. Documento de 1997 da Agência de Defesa dos Estados Unidos, no qual são apresentadas evidências de relações de aliança do exército colombiano com grupos paramilitares:  http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB166/index.htm#docs ;
3. Colombia IDPs 'face vote abuse':  http://english.aljazeera.net/focus/2010/05/20105251832686557.html ;
4. Ex-defense chief wins Colombia Vote: http://english.aljazeera.net/news/americas/2010/06/2010620213922101559.html ;
5. Documentário sobre o Plano Colômbia:  Empire in the Andes http://freedocumentaries.org/teatro.php?filmID=310&lan=en&size=big .

terça-feira, 15 de junho de 2010

Mais sobre a punição coletiva aos habitantes de Gaza.

        O jornal McClaTchy expôs recentemente o conteúdo de um documento do governo israelense no qual ele admite que o bloqueio à Gaza não tem nada a ver com questões de segurança e o tráfico de armas para o território, mas sim consiste num método de "guerra econômica" com o propósito de pressionar o Hamas e a população de Gaza. O documento foi enviado ao grupo israelense de direitos humanos Gisha, como resposta a uma ação judicial do grupo contra Israel exigindo que o governo dê mais informações sobre o bloqueio. O Gisha passou o conteúdo do documento ao jornal. No documento Israel diz que "um país tem o direito de decidir escolher não se empenhar em relações econômicas ou dar assistência econômica à outra parte do conflito, [...] e operar utilizando 'guerra econômica'".
      Desde setembro de 2007, quando do início do bloqueio, a organização israelense de direitos humanos Gisha, junto com outros organizações de Israel, pressionam o governo para que torne público os reais objetivos do bloqueio, para que divulgue exatamente quais têm sido as sanções impostas, o que é permitido entrar e sair da Faixa de Gaza, além de pressionar Israel para que suspenda o bloqueio. O grupo Gisha, na sua página na internet, tem apresentado, com dados precisos, como o estrangulamento econômico de Gaza não tem por objetivo senão punir coletivamente os 1.5 milhões de palestinos que vivem num território que cabe 61 vezes dentro de Israel - certamente, entre as razões principais,  por terem eleito um governo “inimigo” do Estado israelense.

1.Gaza em mais números
            A decisão, em 2007, do Gabinete de Segurança israelense autorizando a restrição do movimento de entrada e saída de mercadorias e pessoas na Faixa de Gaza, tem por alvo o controle sobre o direito de ir e vir dos palestinos de Gaza, o banimento de produtos essenciais (considerando alguns como “luxúria”, como o macarrão) para a sobrevivência da população e a inviabilização de qualquer atividade econômica(produção-exportação-importação). Segundo critérios do governo de Israel, vários produtos foram banidos porque não fazem parte do “mínimo” necessário para a sobrevivência, sendo rotulados de produtos de “luxúria”. Entre eles está o macarrão, por exemplo. Abaixo alguns dados sobre o bloqueio e suas consequências para a população de Gaza:

• são proibídos itens que Israel considera como de uso duplo (tanto para fins civis quanto militares): cimento, vidro, aço, papel, etc. Materiais hoje mais do que essências em Gaza, sobretudo após os bombardeios de 2008-2009, que destruiram quase toda a infraestrutura - já precária - de Gaza, como industrias e prédios governamentais. Estima-se que 20.000 palestinos de Gaza continuam desabrigados em decorrência dos ataques de 2008-2009, que, por causa da ausência de materiais de construção, estão impossibilitados de reconstruir suas casas. “A maioria dos materiais de construção não tem “uso duplo” – não há nada inerentemente perigoso sobre eles, e eles não são ‘compatíveis para uso militar’ de acordo com as linhas gerais do Ministério da Defesa. Por isso, o desejo de evitar a sua entrada está relacionado com a política total de pressão e prevenção de que haja uma ‘vida normal’”, argumenta a Gisha;

• a entrada de produtos em Gaza está limitada a aproximadamente 70 itens, entre produtos alimentícios e de outras necessidades (detergente, sabonete), medicamentos, etc. Tais mercadorias entram via coordenação com o Ministério Palestino de Economia Nacional, organizações internacionais e importadores privados;

• até segunda-feira última não era permitido a entrada em Gaza de geléia, lâmina de barbear (até onde sei uma lâmina de barbear não faz parte do arsenal de um exército nem de um grupo terrorista), etc. A permissão da entrada de alguns itens decorre da repercussão internacional do ataque à frota de ativistas que levavam ajuda humanitária à população de Gaza, que resultou na morte de 9 ativistas. Israel disse que também permitirá a entrada de alimentos complementares, como coentro e bolachas;

• Israel continua proibindo a entrada de itens puramente de finalidade civil, como tecidos, varas de pescar, embrulhos de alimentos, etc. Abaixo uma lista parcial de produtos permitidos e proibidos de entrarem em Gaza:

Proibidos
Gengibre, frutas em conserva,chocolate, geléia (acaba de ser permitida), vinagre, frutas secas, carnes frescas, cesso, sementes e castanhas, madeira, cimento, sal industrial, plástico, tetal, várias redes de peixe, tecidos, margarina industrial, cordas para pesca, papel A4, cadernos, máquinas de costura, aquecedores, cavalos, burros, jornais, brinquedos, etc.

Permitidos
Fermento, açúcar, adoçante, arroz, sal, óleo de cozinha, massas, feijão, lentilha, leite em pó, laticínios, carne, peixe e vegetais congelados, medicamentos, produtos para higiene feminino, papel higiênico, shampoo, condicionador e sabonete, pasta de dente, carne enlatada, esponja para limpar a louça, canela, latas de lixo, velas, fósforos, vassouras, camomila, etc.

• matérias primas como margarina industrial (como visto nos itens da tabela) e glicose são proibidas, claramente como um método de evitar que os residentes de Gaza produzam suas próprias bolachas e recomecem uma atividade econômica que está parada há 3 anos. Contudo, é permitido que Gaza compre bolachas produzidas em Israel;

• desde o fechamento das fronteiras de Gaza, 259 caminhões deixaram o território. Uma média de 70 caminhões por dia deixavam Gaza em 2005. Em 3 anos, Israel permitiu que Gaza exportasse menos do que era acostumado exportar em 4 dias. Para se ter uma ideia do que isso significa, uma única empresa de alimentos em Israel (Tnuava) envia uma média de 400 caminhões de sua fábrica todos os dias para vários locais no país;

• a passagem de Rafah está fechada há três anos. Uma média de 3,192 pessoas passam por essa fronteira todos os meses. Antes do bloqueio a média era de 40.000. Só no aeroporto de Tel Aviv uma média de 910.000 pessoas transitam mensalmente;

• mais de 90% da água de Gaza está poluída;

• 86.000 unidades de moradia precisam ser construídas para suprir as necessidades da população (devido sobretudo a destruição causada pelos bombardeios israelenses);

• 3.956.000 toneladas de cimento, 653.600 de ferro e 129 milhões de metros de cabos de eletricidade são necessários;

• Israel tem sempre dado respostas vagas a grupos de direitos humanos que têm exigido que o governo defina o que considera por itens “humanitários”;

•as forças armadas israelenses se recusam a tornar público documentos que, segundo o Gisha, contêm cálculos feitos pelas forças armadas sobre as necessidades calóricas da população de Gaza. O grupo está preocupado com a “aparente prática das forças armadas ao determinar um mínimo de padrão ao qual reduz o 1.5 milhões de moradores de Gaza”;

2. Punição coletiva

       Não há dúvidas de que o bloqueio ilegal da Faixa de Gaza tem por intuito inviabilizar qualquer possibilidade de uma atividade econômica mínima no território. A retórica dominante das autoridades israelenses de que o cerco é uma questão de segurança interna do Estado de Israel, não só é refutada pelas condições inumanas e a tragédia humanitária de Gaza, como também por declarações do próprio governo, como o documento enviado ao grupo de direitos humanos israelense.
       Israel fechou todas as principais linhas comerciais em Gaza (Karni, a mais importante, seguido do fechamento de Sufa e Nahal Oz), transferindo a rota de entrada e saída de produtos para uma passagem alternativa menor que as anteriores. Cairo sempre contribuiu com esse bloqueio, pois, até o acontecimento da frota humanitária, havia mantido a sua fronteira com Gaza também fechada. As importações atualmente estão em 25% do que Gaza precisa. Antes do cerco, o território recebia aproximadamente 10.400 carregamentos de caminhão ao mês, e, desde 2007, Israel tem permitido apenas a entrada de 2.500 caminhões.
        Um governo que controla até a entrada de produtos alimentícios com base no que ele postula como nutricionalmente suficiente para cada morador de Gaza, quer ter controle sobre o que há de mais elementar e fundamental para manter a vida dos palestinos: alimentação. Com isso Israel controla a vida e, consequentemente, a morte dos palestinos de Gaza. 80% dos habitantes do território precisam de ajuda humanitária para se alimentar. Se isso não é punição coletiva, o que é então?
       E enquanto essa retórica de Israel de que o cerco é uma questão de segurança de Estado receber respaldo e apoio de Washington e dos principais países europeus, Israel continuará a política de estrangulamento econômico e punição coletiva dos habitantes de Gaza e a colonização de mais territórios palestinos na Cisjordânia. Embora Obama tenha realizado pronunciamentos afirmando que a questão humanitária em Gaza está insustentável, e pedido para que Israel alivie o bloqueio, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, em entrevista concedida a Robert Frost, entrevistador da Aljazeera em inglês, manteve apoio incondicional ao bloqueio. Quando perguntado sobre o bloqueio e a morte dos 9 ativistas, Gates, em uníssono com as autoridades israelenses, respondeu: “parte do problema que Israel tem tido é que o Hamas usou doações humanitárias no passado principalmente para fortalecer a sua capacidade militar em Gaza. Materiais de construção não foram enviados para construção de casas, eles foram para bunkers. E clara que milhares de foguetes foram lançados de Gaza em Israel [...] de modo que os israelenses têm realmente um problema de segurança com Gaza e penso que essa é a razão em primeiro lugar para o bloqueio”.
        Na resposta de Gates não há sequer uma referência ao sofrimento dos palestinos de Gaza. Tampouco, é claro, aos acordos de não agressão mútua entre o Hamas e Israel (que tinham como exigência para sua permanência que o bloqueio fosse suspenso), mas que não foram cumpridos por Israel, e a colonização ininterrupta de territórios palestinos na Cisjordânia, que só aumentam o conflito e a insegurança na região. A fala do secretário apenas reproduz o discurso israelense de perigo à segurança interna, e demonstra, como já esperado, que Washington continuará dando suporte ao bloqueio ilegal de Gaza.
      Com a intensificação da crise humanitária em Gaza a partir de 2007, cada vez mais os grupos de direitos humanos e os cidadãos israelenses e também de outros países - sobretudo dos EUA -  solidários aos palestinos,  devem aumentar os protestos contra o cerco, exigindo que Israel permita a livre saída e entrada de mercadorias no território. Somente a pressão da sociedade civil organizada nesses países poderá pressionar os seus governos para que exijam, em instâncias internacionais, que Israel ponha um fim ao bloqueio e permita a livre distribuição das doações internacionais.
     Os palestinos de Gaza e de todos os territórios ocupados e tomados têm o direito fundamental de viver uma vida normal, com dignidade, o direito de empreenderem sua atividade econômica, sem a qual evidentemente nenhum povo consegue sobreviver, e de elegerem, democraticamente, seu próprio governo, sem que por isso sejam punidos.

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Fontes:

1. Website do grupo israelense de direitos humanos, Gisha:  http://www.gisha.org/index.php?intLanguage=2&intSiteSN=113&intItemId=1809 ;
2. O jornal online Mcclatchy :  http://www.mcclatchydc.com/2010/06/09/95621/israeli-document-gaza-blockade.html ;
3.www.media-ocracy.com;
4. Entrevista com o Secretário de Defesa do Governo dos Estados Unidos, Robert Gates: http://english.aljazeera.net/programmes/frostovertheworld/2010/06/201061091243602584.html  

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Bloqueio à Faixa de Gaza: cerco ilegal.

   O ataque militar israelense em mares internacionais ao comboio de ativistas de várias nacionalidades que levavam ajuda humanitária aos moradores de Gaza revela novamente a displicência do Estado de Israel em relação a tratados internacionais humanitários e a resoluções das Nações Unidas. Obviamente que uma frota cujos conteúdos eram comida, água, suprimentos médicos e materiais de construção não podem ser uma ameaça a um Estado que possui o 5º exército mais bem aparelhado do mundo. O argumento de Israel de que os soldados que invadiram os navios foram agredidos pelos ativistas e que essa foi a causa do conflito que levou à morte de 9 ativistas e à detenção de aproximadamente 660 tripulantes é expressão da ausência de argumentos em face dos fatos. A verdade é que o bloqueio ilegal de Gaza e os controles do seu espaço aéreo e marítimo, o que significa controle total do que pode e não pode entrar no território, tem sido o método do Estado de Israel para punir coletivamente os aproximadamente 1.5 milhões de palestinos que vivem na Faixa de Gaza. Desde 2005, quando Israel "desocupou" militarmente a região, Gaza está cercada por todos os lados e o governo de Israel controla tudo o que entra e sai, inclusive o direito dos seus moradores deixarem e voltarem ao território. Até mesmo o Egito, afora Israel, único país que faz fronteira com Gaza, mantinha sua fronteira fechada até o dia 31 de maio, então aberta em decorrência do ataque ao comboio de ativistas.
   Esse cerco é ilegal, sendo reprovado até pelo Conselho de Segurança da ONU, na resolução 1860, que o reconhece como um cerco que pune coletivamente os moradores de Gaza. A resolução exige o "desimpedimento das provisões e a distribuição de assistência humanitária em todo o território de Gaza, incluindo comida, combustível e tratamento médico" (http://www.zcommunications.org/rogue-state-politics-erasing-international-law-in-israel-s-attack-on-gaza-by-anthony-dimaggio ). Com a eleição do Hamas em 2007, o bloqueio tem se intensificado, tornando a vida dos moradores de Gaza ainda mais difícil.

Gaza em dados
   Para se ter uma ideia de quão insustentável tem se tornado as condições de vida no território, aqui vão alguns dados (http://english.pnn.ps/index.php?option=com_content&task=view&id=8283&Itemid=58 ):

1) em Gaza 8 em cada 10 moradores dependem de ajuda humanitária para sobreviverem;

(2) Gaza precisa, diariamente, de aproximadamente 400 caminhões para suprir as condições nutricionais básicas dos seus moradores. Contudo, Israel tem permitido a entrada de em média 170 caminhões por semana;

3) recentemente, roupas que ficaram armazenadas no porto de Ashod por um ano foram entregues mofadas À população;

4) 95% da água em Gaza é considerada pela Organização Mundial da Saúde como imprópria para consumo;

5) 48% das crianças com menos de 5 anos estão anêmicas;

6) 75 milhões de litros de esgoto não tratado são despejados no mar Mediterrâneo todos os dias por falta de sistemas de canalização apropriados e materiais de reposição.

    Durante os bombardeios de 2008-2009 - que Israel justificou como uma reação de represália ao fato de o Hamas ter "quebrado" o acordo de não agressão mútua lançando mísseis contra território israelense, quando, na verdade, foi Israel que não cumpriu o acordo uma vez que uma das condições fundamentais para sua consolidação era que Israel suspendesse o bloqueio -

7) mais de 120.000 trabalhos foram perdidos porque a já precária zona industrial de Gaza foi completamente destruída;

8) 15.000 casas e apartamentos foram afetados ou destruídos;

9) um terço das escolas foram destruídas. E o pior é que nada pode ser reconstruído, pois Israel não permite a entrada de materiais para construção.

   Diante de dados como esses, que são apenas uma parte das evidências de como as condições mínimas para uma vida de “sobrevivência precária” têm sido negadas à população de Gaza, é claro que o argumento das autoridades de Israel de que o bloqueio tem por intuito evitar que armas sejam contrabandeadas para o Hamas e, portanto, combater o terrorismo contra o Estado de Israel, não se sustenta. O estrangulamento econômico de Gaza é parte de uma política que o Estado israelense vem, sobretudo na última década, intensificando de modo a tornar cada vez mais inviável a formação de um Estado palestino na Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. A intensificação da expansão das colônias judaicas na Cisjordânia, a construção, em curso, do muro de 400 quilômetros que não somente está separando palestinos de palestinos e palestinos de israelenses, mas também em vários pontos tomando mais territórios palestinos, os check points, nos quais os palestinos têm de apresentar documentação para adquirir permissão de locomoção, a prisão de ativistas palestinos como terroristas, etc., são também parte dessa política de apartheid da população palestina.
    Os integrantes do batalhão Atlacatl, do exército salvadorenho - treinado e financiado pelos Estados Unidos - que, em 13 de dezembro de 1981, cometeu um dos maiores massacres da história recente da America Latina, quando todos os moradores do vilarejo de El Mozote, que ficava em território controlado pela guerrilha, foram assassinados com métodos cruéis, repetiam um jargão que era o seguinte: “secar o rio para evitar que os peixes crescam”. Guardadas as diferenças de tempo, território e nações, o bloqueio de Israel à Gaza parece se assemelhar em mentalidade: quanto mais inviável a vida em Gaza menor as chances de luta contra o controle de Israel sobre a vida dos palestinos e por um Estado palestino.

Até onde vão as justificativas
    Um outro argumento das autoridades de Israel é que, enquanto o Hamas não reconhecer o direito à existência do Estado de Israel, as negociações a respeito da possibilidade da implantação de um Estado palestino continuarão estagnadas. Várias vezes o Hamas já propôs um cessar-fogo sob a condição de que Israel suspendesse o bloqueio, e embora Israel tenha muitas vezes efetivado o acordo, ele não o cumpriu. O reconhecimento do Estado de Israel será uma consequência do estabelecimento de negociações justas com as autoridades palestinas, incluindo o Hamas, e da implantação de um Estado palestino ao menos nos marcos de antes de 1967. Hoje é o Hamas o grupo palestino escolhido como inimigo número um pelo governo israelense, mas vale lembrar que nos anos 70 e 80 o inimigo era a OLP (Organização pela Libertação da Palestina) e seu principal lider Yasser Arafat e mais tarde o Fatah. Há evidências de que o Estado israelense apoiou financeiramente o Hamas quando do seu crescimento para fortalecê-lo como contraponto às outras organizações palestinas, de maneira a estimular a conflito entre suas lideranças e dificultar, assim, a unidade política entre os palestinos. Hoje o Hamas - que agora tem recebido ajuda financeira do Irã, para as autoridades israelenses a principal ameaça externo na região - é considerado o grande inimigo  palestino  e a Autoridade Palestina é que é apresentada como único representante do povo palestino com quem Israel se dispõe a negociar.
    Tamanho desprezo de Israel às leis internacionais e a forte oposição da comunidade internacional ao bloqueio de Gaza, e de mentiras atrás de mentiras a que as autoridades israelenses recorrem para justificar a punição coletiva aos moradores de Gaza e dos outros territórios ocupados, somente perduram, sem maiores consequências para Israel, em parte porque o seu principal aliado é os Estados Unidos, que sempre bloqueia, no Conselho de Segurança, com o apoio de vários países europeus, qualquer tentativa de impor punições a Israel. O governo estadunidense não se opõe ao bloqueio e quando, como no caso do ataque ao comboio de ativistas no dia 31 de maio, Israel sofre forte represália da comunidade internacional, o governo estadunidense apenas solicita que o próprio governo israelense investigue as razões de um suposto erro nas ações militares. Como se o que ocorreu dia 31, por exemplo, não seja o resultado de medidas deliberadas, mas de falhas no comando. Os Estados Unidos, mais do que ninguém, sabe disso, e utiliza-se dessa retórica apenas para satisfazer as exigências do teatro diplomático. Washington sempre esteve com Israel, devido a sua importância estratégica para os interesses econômicos e geopolíticos do governo norteamericano. Seria ingenuidade esperar que com a Administração Obama - apesar de alguns pronunciamentos que tenham causado a impressão de serem mais ríspidos em relação ao comportamento de Israel - a relação EUA-Israel tomaria uma nova direção.
    O bloqueio de Gaza - uma ação deliberada com o fim de intensificar o empobrecimento da população palestina na região como um meio de punição coletiva - viola vários artigos da Quarta Convenção de Genebra, que exige que os estados tomem, quando em guerra, todos os meios possíveis para protegerem não combatentes, proíbe qualquer ação que ameace vidas individuais e que civis sejam feitos reféns para propósitos políticos e militares. Mas fundamentalmente, essa punição coletiva através do cerco a Gaza fere a razão principal por trás das Convenções de Genebra e dos princípios legais nelas formulados: proibir que os estados se utilizem de punição coletiva contra civis em momentos de conflito. O agravante ainda de tudo isso, que torna mais gritante a violação de Israel à carta das Convenções de Genebra, é o fato de Israel não ser um Estado que esteja em guerra.
    Apesar de a grande mídia internacional, reproduzindo o pensamento dominante na mídia estadunidense, jamais fazer fortes críticas ao comportamento ilegal do Estado de Israel, não expondo de fato as reais condições do povo palestino, a opinião internacional tem cada vez mais não se deixado iludir pelo silêncio deliberado em face das violações sistemáticas das leis internacionais praticadas por Israel, já que suas ações, como a morte dos 9 ativistas, tem cada vez mais se sobreposto ao discurso das suas autoridades. Também as redes de informações e notícias estabelecidas entre jornalistas, ativistas, movimentos sociais, mídias independentes têm sido um mecanismo de quebra do bloqueio do discurso hegemônico sobre o que ocorre nos territórios ocupados.
     As ações de Israel têm cada vez mais contribuído para a insegurança da sua população, a instabilidade na região e a crescente oposição internacional. O ataque ao comboio humanitário em 31 de maio põe mais uma vez em evidência dois fatos inegáveis: o bloqueio à Gaza, ao não permitir a entrada de ajuda humanitária e com ela artigos de necessidade básica, está causando deliberadamente fome em massa no território; e a transformação em inimigo de Estado qualquer um que tente, de algum modo, amenizar o sofrimento da população palestina na Faixa de Gaza. Com essas medidas, o Estado israelense tende cada vez mais a ficar isolado e a ameaçar também a segurança dos seus próprios cidadãos.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A criminalização dos movimentos sociais.

        A criminalização dos movimentos sociais é uma tática historicamente reaplicada pelas elites brasileiras quando, na sua leitura, elas sentem que seus privilégios políticos e econômicos, principalmente o aumento irrestrito da propriedade privada, estão sob ameaça. Na verdade, não tem havido um período na história do Brasil em que as elites não utilizaram instâncias do Estado para manter e aumentar seus privilégios.
       A intensificação, nos últimos anos, dessa tática tem sido estendida para todos os setores da sociedade brasileira onde quer que haja luta por direitos sociais previstos na Constituição. Essas elites utilizam todos os meios possíveis para incriminar os movimentos sociais, desde a utilização do Judiciário e do Congresso, passando pela mídia corporativa, até o meio repressivo mais recorrente, a polícia. Processos judiciais, prisões, CPMIs, infiltrações nos movimentos, ordens de despejo, difamações repetidas à exaustão pelos meios de comunicação corporativos, são os mecanismos à mão das elites brasileiras para barrar lutas que, numa sociedade realmente democrática, são constitucionalmente legítimas.
      E claro que quanto mais forte um movimento, quanto mais ampla e consistente a sua base social de mobilização, maiores serão as tentativas de desmoralizá-lo e desmobilizá-lo. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) - que surge durante a redemocratização do país, em 1984 - por causa da sua força social, pois é o movimento popular com uma das maiores bases sociais, não somente da America Latina, mas também do mundo, tem sido o principal alvo dessa campanha difamatória e repressiva. Ao ponto de a direita no Congresso aprovar, em 2009, a criação de uma CPMI para investigar supostas verbas públicas destinadas ao movimento. O MST nunca teve problemas com prestação de contas com o Estado, e quando há recursos públicos destinados ao movimento são para projetos apresentados por cooperativas e organizações de assentados. Para quem conhece cooperativas e assentamentos do movimento, sabe quão séria é a organização coletiva dos seus membros e quão grande é a atenção com tesouraria e a prestação de contas.
      Agora imagine se fosse criada uma CPMI para investigar o repasse de verba pública para o meio rural do agronegócio, e os convênios firmados com cooperativas e associações de grandes empresários rurais, muitos deles certamente compondo a bancada ruralista no Congresso. Quanta má aplicação de verba pública não seria descoberta.  
      A perseguição  a vários integrantes do movimento também vem aumentando. Como na cidade de Iaras, São Paulo, onde, em 2009, 9 integrantes do movimento foram presos por participarem da ocupação de uma terra pertencente à União, mas grilada pela Cutrale, empresa produtora e exportadora de suco de laranja.
      Contudo, a tentativa de criminalizar movimentos sociais se estende também a movimentos pequenos e muito recentes, sobretudo nas grandes cidades, assim como a etnias indígenas que lutam tanto por reconhecimento, por parte do Estado, de suas identidades, quanto pelo direito às terras que lhes foram roubadas. O caso mais em destaque atualmente é a luta da etnia Tupinambá, no estado da Bahia, que tem tanto sofrido repressão constante - com inclusive prisão de seus líderes acusados sem provas pela própria Política Federal de serem criminosos formadores de quadrilhas - quanto difamações na mídia, como na revista Época, que por meio de reportagem claramente de conteúdo racista, questionou a identidade dos índios, simplesmente julgando, sem critério algum, que o traço de seus rostos apresentam "mais ascendência negra do que indígena" (http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI105789-15223,00-O+LAMPIAO+TUPINAMBA.html) . Ou seja, para ser índio, além de ter que estar pelado e morando no meio da mata, tem que apresentar determinados traços que a jornalista se julgou capaz de atribuir como constitutivos da morfologia facial de um índio “puro”. Como se também critérios de mestiçagem, tão comum em nosso país, fossem a justificativa para deslegitimizar a luta dos Tupinambás, e de todas as etnias que vêem sua terras serem usurpadas pela concentração fundiária.
      Não somente os movimentos, mas também sindicatos, professores e funcionários de escolas e universidades públicas brasileiras têm sofrido sistemática repressão. Como da última greve dos professores das escolas públicas da cidade de São Paulo, que, além de não conseguirem que nenhuma de suas reivindicações fossem atendidas, sofreram forte repressão policial e ataque constante da mídia corporativa. As principais reivindicações eram: reajuste salarial de 34,3%, incorporação de gratificações cortadas, plano de cargos e salários, garantia de emprego, validade de atestado médico, não descriminação mediante categorias, etc. Reivindicações mais do que legítimas num estado que, embora sendo o mais rico do país, paga um professor do ensino fundamental um salário miserável de 785, 50 reais e fixa o piso salarial de um professor do ensino médio em 909,30 reais, podendo chegar no final da carreira a um salário de pouco mais de 1.100,00 reais.
      Vários foram os casos de mentiras forjadas pela mídia e pelo governo paulista a respeito da greve.  O número de manifestantes nas passeatas foi sempre maior do que o divulgado nos jornais, a farça anunciada de que poucos  professores aderiram à greve,  o destaque ao transtorno que as passeatas causaram ao transito paulista em detrimento de qualquer apresentação mais séria sobre a greve, o silêncio sobre as agressões que os professores sofreram da repressão policial,   supostos "educadores" de renome deslegitimizando, em artigos em jornalões, a luta dos professores - já de decadas - contra a precarização não somente das suas condições de trabalho mas de toda a ede pública de ensino, etc. 
     Um dos mecanismos que mais tem comprometido o cumprimento da Constituição de 1988, e, portanto, o aprofundamento real da democracia no Brasil, consiste no fato de o Poder Judiciário brasileiro ter sido usado como principal ferramenta para criminalizar os movimentos sociais, de maneira a respaldar judicialmente a violência policial contra eles. Como argumentou a juíza de direito da 16º vara criminal de São Paulo e secretária do conselho executivo da Associação para a Democracia-Brasil, Kenarik Boujikian Felippe, em artigo na revista Caros Amigos (edição especial, número 49, abril de 2010), o Judiciário tem sido usado sistematicamente para transformar em delito as lutas por direitos sociais e os sujeitos que empreendem essas lutas em delinquentes. Para a juíza, “a criminalização é usada para atender o mais rápido possível os detentores do poder, de modo a transmitir falsamente a idéia de solução de um problema de conotação social. A criminalização, apresentada em caráter individual, objetiva reprimir o exercício de luta pelas transformações sociais”.
      Esse uso sistemático e indiscriminado, pelas elites, do Judiciário e dos Órgãos de Segurança Pública, esses últimos ainda empregando ex-torturadores do regime Militar, sem dúvida é uma perpetuação de práticas repressivas do Estado contra seus cidadãos que pouco foram alteradas com a redemocratização do país. A impunidade contra os crimes cometidos nos 20 anos de autoritarismo militar é de longe a principal razão para que o Judiciário e a polícia continuem sendo tão facilmente utilizados para reprimir as lutas democráticas por um país menos desigual. Os ataques por parte dos setores conservadores, por meio da mídia a seu serviço, à conjectura de se reanalisar a Lei de Anistia e ao III Programa Nacional dos Direitos Humanos, resultado da organização dos movimentos sociais e da sociedade civil brasileira, demonstra que as elites desse pais estão muito conscientes de que rever o passado aprofundará a democracia popular e, consequentemente, diminuirá sua concentração de poder.
     Sabemos que a Constituição de 1988 foi uma conquista de anos de luta da sociedade civil brasileira, representada nos movimentos sociais, sindicatos, estudantes, trabalhadores, professores, intelectuais, etc. As lutas sociais que vemos atualmente no Brasil levantam a bandeira comum de que a Constituição seja de fato aplicada para que de fato o Brasil aprofunde a sua experiência democrática. A criminalização dos movimentos sociais é a tentativa de barrar, no jogo de forças da sociedade brasileira, o aumento do poder das classes populares, que é uma decorrência direta do aumento da sua organização. O medo dessas elites não é de que se cumpra a Constituição liberal do Estado Brasileiro, mas do que pode resultar do seu cumprimento: a possibilidade de que as classes populares, à medida que verem a constituição sair do papel em decorrência de suas lutas, queiram dar um passo a mais, e tornar bandeira de luta comum a superação da democracia burguesa representativa, por uma democracia popular, de participação direta. O medo das elites brasileiras já conhecemos, é o medo de que as classes populares se organizem.
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OBS: para reportagens sérias sobre a luta dos Tupinambá no sul da Bahia, recomendo a leitura das reportagens escritas no jornal Brasil de Fato (http://www.brasildefato.com.br/v01/search?SearchableText=tupinamba ).

sábado, 22 de maio de 2010

O Irã: bode expiatório da questão das armas nucleares.

Enquanto o Irã, em função do seu programa de enriquecimento de urânio, é apresentado pelo governo dos Estados Unidos como uma ameaça à "paz" mundial, países que realmente possuem armas nucleares, como Israel, Paquistão e Índia, definitivamente não sofrem a mesma pressão. Esses três países não são signatários do TNP (Tratado de Não proliferação de Armas Nucleares), ratificado em 25 de março de 1970, e Israel sempre se recusou a autorizar a realização de inspeções aos seus sistemas nucleares, atitude que nunca recebeu críticas por parte de Washington, dado que Israel é seu principal aliado na região. Se de fato a preocupação fosse com a ameaça que é países possuírem ou buscarem possuir tecnologia nuclear para fins militares, e a insegurança geopolítica que disso decorre, o principal perigo, no caso do Oriente Médio, seria Israel, único país na região que possui armas nucleares, e o país que mais tem empreendido incursões militares contra seus vizinhos. A única incursão agressiva do Irã fora de suas fronteiras foi durante o governo do Xá na década de 1970, quando, com apoio dos Estados Unidos (vale lembra que este governo ascendeu ao poder por um golpe de Estado com apoio de Washington nos anos 50, que derrubou um governo laico democraticamente eleito), invadiu duas ilhas árabes(http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16537 ).
A questão também não é o fato de o regime atual no Irã ser abominável, ter fraudado as últimas eleições, etc. Em matéria de violação de Direitos Humanos e regimes ditatoriais, a Arábia Saudita e o Egito de longe superam o Irã, mas nem por isso recebem a mesma atenção, e a razão disso é clara: são aliados estratégicos dos EUA. Toda vezes em que a ONU tentou aprovar uma resolução que exigisse que Israel assinasse o TNP e permitisse as inspeções da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), os EUA, por meu do seu poder de veto no Conselho de Segurança, bloqueou a resolução.
Não tirando a importância e a legitimidade do TNP como acordo de valor internacional que contribui, por um lado, para o controle do desenvolvimento de tecnologia nuclear para fins militares e, por outro, para a ampliação de zonas desnuclearizadas, é certo que ele é usado também como um dispositivo que assegura o monopólio dessa tecnologia pelos países que a possuem. Ninguém tem dúvida que possuir tecnologia militar nuclear é um grande instrumento de poder. Se há algum país que deve temer alguém é o próprio Irã, que se vê cercado pela presença militar norte-americana por todos os lados: a oeste, o Iraque ocupado e, a leste, o Afeganistão. As ameaças com palavras do governo dos EUA, inclusive de uma possível invasão, somente tendem a aumentar a insegurança do Irã, o que leva seus líderes a cada vez mais acreditarem ser indispensável o desenvolvimento de armas nucleares para impedir a invasão do país. Que outro meio, senão armas nucleares podem barrar os Estados Unidos quando ele decide invadir um país? De fato, ninguém deseja que o Irã ou qualquer outro país possuam armas nucleares, mas um olhar mais objetivo sobre toda a querela atual e a pressão sobre o Irã mostra a hipocrisia dessa propaganda que tenta demonizar esse país. Já sabemos que para justificar a invasão do Iraque os EUA, com apoio da sua mídia, e parte da mídia internacional, forjou a mentira de que Saddam possuía armas nucleares, quando o que o Iraque tinha de mais moderno em termos militares eram tanques vendidos ao país pelo Brasil na década de 80.



Verdadeiros Objetivos

Se a intenção fosse de fato desmilitarizar o máximo possível o mundo, os Estados Unidos, por exemplo, deveria começar pela sua própria casa. O orçamento militar, mesmo na atual crise econômica, dos EUA é maior, pasmem, que a soma do orçamento militar de todos os países do mundo juntos. Obama também acabou de autorizar o Congresso norte-americano a ampliar o orçamento militar. Uma das primeiras medidas de Obama quando assumiu o poder, foi a de intensificar a guerra no Afeganistão, aumentando em mais de 30 mil o número de soldados na região, e estendendo a guerra para além das fronteiras afegãs, com incursões militares em solo paquistanês. Assim, qual país seria mais perigoso para a paz mundial: os EUA, que estende uma guerra a um país que não somente detém armas nucleares cuja tecnologia para o seu desenvolvimento foi transferida a ele pelo próprio EUA, mas que também está há décadas em guerra com o seu vizinho, a Índia, que também possui armas nucleares? Ou um país como o Irã, que até o presente momento tem procurado desenvolver tecnologia de enriquecimento de urânio? E isso não é tudo. Em 2006, os EUA assinaram com a Índia, país que além de possuir armas nucleares e estar em guerra com seu vizinho jamais assinou o TNP, um acordo de cooperação nuclear. Isso mesmo. E pergunto ao leitor: alguma vez Washington cogitou em exigir que a ONU aplicasse sanções econômicas contra a Índia, como tem feito em relação ao Irã?
Em vista de tudo isso, não podemos deixar de pensar que os Estados Unidos estejam preparando o terreno para a sua próxima incursão militar, embora esteja atolado em duas guerras sem previsões de acabar e apesar da crise econômica. A invasão do Irã concretizaria um objetivo de controlar as principais fontes de petróleo: Arábia Saudita, aliado econômico de longo tempo, e Iraque e Irã, ambos pela força. Mas creio que, no caso do Irã, as coisas parecem mais difíceis, pois o país tem como principal parceiro econômico a China, de maneira que o impacto e importância global de uma possível invasão do Irã é maior; além do mais, o Irã é um país de 60 milhões de habitantes. Ao menos a China, como membro permanente, pode vetar a autorização de uma guerra pelo Conselho de Segurança. Contudo, como ficou evidenciado mais uma vez no caso do Iraque, os EUA não costumam levam muito a sério a legitimidade do Conselho de Segurança quando ele se torna um entrave aos seus objetivos econômicos e geopolíticos.



O Brasil em cena

Ao contrário do que a grande mídia brasileira tem forjado a respeito do papel diplomático que o Brasil, junto à Turquia, tem exercido como intermediador entre o Irã e os países que fazem coro à pressão dos EUA, tanto o Brasil quanto a Turquia, ou qualquer outro países que estivesse no lugar deles, estão desempenhando, como países soberanos, um papel importante para que haja um equilíbrio de forças na esfera diplomática. E é prova de que parte significativa da comunidade internacional vê como legítimo o direito de o Irã enriquecer urânio para pesquisas de fins pacíficos, como a geração de energia e desenvolvimentos de tecnologia na area médica. Esse contraponto também pode contribuir para barrar as tentativas de estrangular economicamente o Irã por meio de sanções. O acordo assinado pelo Irã segunda-feira última, intermediado por Brasil e Turquia, segundo o qual o Irã se compromete a transportar parte do seu urânio de baixo enriquecimento para ser armazenado na Turquia, em troca de combustível nuclear para pesquisas na área médica, pode ser muito positivo para a salvaguarda da soberania do Estado iraniano, sob ameaça constante por parte da maior potência militar do mundo. Mais detalhadamente, o acordo obriga o Irã a enviar 1.2 toneladas de urânio, o que é aproximadamente metade do que ele possui, para a Turquia, sob supervisão da AIEA, a partir do mês que vem. Em troca, o Irã receberá, dentro de um ano, 120kg de combustível altamente enriquecido dos países do grupo de Viena (dentre eles, EUA, Rússia e França).
Embora os EUA tenha sido um dos incentivadores dessa proposta, assim que o acordo foi efetivado Washington declarou ceticismo em relação a sua eficácia. O que prova que os interesses estadunidenses de pressão sobre o Irã não se reduzem à questão nuclear. No site da revista on-line Carta Maior, saiu trecho de uma carta que Obama enviou ao presidente Lula aproximadamente duas semanas atrás, na qual ele demonstra estar de total acordo com a proposta e ciente da sua importância. No entanto, assim que ela se tornou uma realidade, o presidente norte-americano anunciou publicamente a sua descrença em relação ao acordo e manteve as exigências de novos sanções ao Irã.
Os desdobramentos dessa pressão podem ser muito negativos para a paz no Oriente Médio, e só tendem a provocar mais instabilidade na região, sempre sob a discurso falacioso de que a preocupação é justamente a “estabilidade” internacional.